terça-feira, dezembro 13, 2005


O mundo das canções

Riscar o céu aberto,
Abrir a porta a silêncios ágeis
Repescando o cheiro a mar
E amores esboroados em lagrimas alterosas,
Em batidas lentas de sussurros
E imagens vagas.


Marcar o vazio com linhas e pensamentos
Criar a desordem, errar em vinhedos perdidos
Degustá-los,
Imaginar impérios que misturam sangue, voz e palavras.

Amar, sem mais,
Como no mundo perfeito das canções.

terça-feira, novembro 22, 2005



Avenida marginal

A dormência salpicada da marginal
Sonolenta, espiando invernias
A penumbra de um dia de Novembro findando
Alastrando no asfalto cintilando de chuva fria
Por quem esperei, lento vagar de um estio interminável
Espantando vagas de silêncio no passeio marítimo
Crescendo em ecoar dos passos, corrida
Compassada e atordoando sentidos
Sufocando, amarrando, soluços teimando jorrar
A agonia das palavras querendo soltar-se
Fugir dos remotos cantos do esquecimento...

A luz entorna-se pelo dia.

Espero não te ver quando chegar.

sexta-feira, outubro 28, 2005



A noite segue adiante

A noite segue adiante
Numa voz quebrada,
Singrando nomes esquecidos
Em vão desespero,
Demorando-se no vício do tempo,
Vagabundeando,
Passos adormecidos que se apagam devagar,
Sentidos que se ocultam
Pressentindo sossegos e excessos.

Ficam as sombras das travessias, devassadas,
Rastos de travo a sal,
Rotinas amarradas ao cais,
Como alicerces da cidade.

Já não faz sentido o que deixou de fazer sentido.

quinta-feira, outubro 27, 2005



Segunda circular


É quase pecaminoso
Vestir e despir em voz baixa
Como um corpo que se desloca e cai
Numa expiação despudorada, acordar
Ontem e hoje e todos os dias
Sofrendo garganta abaixo
Impressões vagas de confusão
A cidade correndo frente à minha janela
Corroendo-se em movimentos sujos
De uma segunda circular sem ruídos de paixão
Esquecidas as rectas que devorámos
Como criaturas à solta, electricidade fulgurante
Demónios,
Em balanços viciantes
Desordem pura.

A manhã é a prova do delito
Como uma imensa espiritualidade
Um prova diária de auto flagelação
Esquecimento inflingido do meu prazer
Um ritual carmim, purpura, escarlate
De palavras resgatadas e sexo carnal
Esquecidas as pulsações dos corpos
Largadas as amarras dos gemidos e do silêncio

Já amanheceu e já não existes.
Não mintas.
Fui mais um conhecido amante
Bolor na escuridão
Entregando-se à realidade.

Chove como há muito não acontecia.
Já esperava que não doesse tanto.

sexta-feira, outubro 21, 2005



Azul Sonoro
por Pedro Peralta

Para o meu amigo daniel costa-lourenço



azul sonoro (celeste)
paladar marítimo:
sal pele toque (brandura)
também o céu
a escuridão luzidia
denominada céu
desce à terra que o sustêm
e irrompe
pela mais fina fissura do dia
o cidadão comum : a luz inteira (suspensa)
a vertigem do crepúsculo
a deambular em todas as horas
e em todas as vozes (e é silêncio
o ruído que se ouve.
e houve, e há
rostos olvidando
uma cidade por rasgar
corpos velozes
e há, o azul depois)


Cidade escura

A minha bagagem vai sempre cheia
De gaivotas expulsas pelo vento
Presenças que se empurram borda fora,
À beira da cidade escondida na tempestade
Regurgitando tirania, de me prender onde não quero
Apagando todos os cigarros que acendo
Retirando-me com ousadia os prazeres que me restam.

Tudo o que tenho é inútil,
Espalha-se no rasto do lixo das ruas mais estreitas,
Soturno coração que insiste em não morrer,
Eterniza-se nos escritos que deixas
Quando amanhece,
Quando a mar cresce sobre as silhuetas adormecidas da noite,
Também as nossas, brisas
Que se cruzam aleatoriamente no mesmo local,
Insistem em despertar juntas, no mesmo impulso.

Tu és, a minha...
Ousadia dos meus vícios,
A luz que guardo no peito,
A luz que me entra no peito,
A fuga apressada das horas,
A minha babel de afectos...

Tu és, a minha cidade escura
Que me expulsa e me prende, com o mesmo encanto,
A luxúria de desejar nada mais do que isso,
Do que te ter,
Mesmo em todas as coisas que não tenho nem vejo,
Escondidas,
Como néon reanimando-se na noite.

terça-feira, outubro 11, 2005


Amor amargo sabor

Acendo um fogo nos dedos,
Sobre papeis amarrotados e alisados,
No silêncio
Gravado na pele,
Segredos abertos nas feridas
Riscadas em néon,
Odiando quem deveria amar.
Mas,
Há muito que a luz que as palavras têm
O sabor que derramas,
Que transportas agora,
Como travo a pó, que se entranha
E ainda não pousou,
Mas rodeia-me
Como vento torneando o corpo,
Deixando incólume o fogo que acendi.

E segue ardendo
Como nenhuma paixão.

sexta-feira, setembro 23, 2005


Céu nocturno

Curioso céu nocturno
Pontos de luz em fogo preso
Que se escapam de fornalhas em movimento
Em fugaz rompante de silêncio eterno

Vagando no ocaso, por acasos sem descrição e ritmo
Sem a música que se mistura, veste a pele nua
Os gritos e os risos que rasgam as colinas
Sem horas que nos exilem os momentos que guardamos

Curioso céu nocturno
Torrente que se acalma, perdida na imensidão da nossa mão
Medo que nos consome, como dia soçobra todas as tardes
O beijo que já não larga e resiste, ante tudo

Curioso céu nocturno
Pontos de luz em fogo preso.

sexta-feira, agosto 26, 2005



Cárcere (escondido da luz)

Esconder a pele e os ossos
num sitio só deles,
E depois a fúria
Arranhando qualquer coisa como a alma
Dorida, em sangue salpicado de cores indeléveis,
Recortando figuras e silhuetas nas sombras das palavras,
Indistintas, intransponíveis, inexplicáveis
Como acidentes felizes do acaso, à espera de acontecer,
Murmurando canções alheias, de sonora lascívia,
Decapitando as agulhas do vinil, trilhando mãos demasiado pequenas para este mundo,
Com êxtase inexplicável e sádico.

Não te podes esconder de mim.

quinta-feira, agosto 18, 2005


Deixa entrar o jazz


No passeio que acompanha o mar
O dia suspende-se em melancolia,
Perdido numa atmosfera de surdinas,
Uma sensação de eterno retorno,
Música de um tempo ausente
Cola-se à pele como o inevitável balançar das ondas,
Aspirando a um contacto leve com o mundo.

Oiço-te aqui e agora,
De olhos içados ao som profundo,
Voando centelhas de paixão e música de solstícios.

Deixa entrar o jazz,
Em sucessivas vagas,
Expondo as entranhas de um coração amordaçado,
Libertando os relicários de demónios que conservas
Como amuletos de má sorte.

Afinal, oiço-te aqui e agora.
Como sempre.

terça-feira, agosto 09, 2005


Je fais de toi mon desire

O desejo é cor dorida e noctívaga
Coisa de minúcias e murmúrios
Que se espreguiça no amainar da manhã,
Sorrindo das memórias longínquas de ontem
Assumindo formas invulgares e inesperadas
Reflectidas como sombras perdidas no escuro
Ouvindo-se como um grito arrancado de uma paixão furiosa
Afundar-se numa boca de metro qualquer,
Insinuando-se nas esquinas mal escondidas da penumbra.

Faço de ti o meu desejo egoísta de amar sem limites,
Amordaçar gemidos de prazer,
Guardá-los só para mim
E ardendo-me as asas, subir às nuvens.

quinta-feira, julho 21, 2005


Braços nus à janela


A noite vem morna e livre,
Jorrando versos e odor a água amansada.

Deixa-te ficar por aí,
Onde te veja, onde me oiças.

Não durmo...

A distância é um veneno alucinogénico,
Morte lenta e dissimulada,
Fulminando o coração que ainda vive,
Recuperando o que se perdeu, que se esvaiu em silêncio,
Aconchegando-se em papel amarelecido contorcido,
Ardendo.

sexta-feira, julho 01, 2005



As palavras (intransponíveis como a tempestade)

Nada mais toca do que as palavras que se acercam de ti,
Coloridas,
O azul com que a solidão desfeita nos pinta.
Não te importes que não me abracem,
Sou intransponível como a tempestade diluindo-se na cidade,
Sem horas, libertina.
Qualquer noite será melhor para nos afastarmos
E não pararmos de nos olhar a esta luz.
Quero-te sempre sem o peso da eternidade,
Mas podes rir enquanto a terra girar sem avareza ou falta de amparo
Na imensidão do vazio,
Á procura de quem faça amor em qualquer terraço de onde se possam ver as nuvens e o céu, como nós.
Nada está escrito que nos impeça de parar de escrever a nossa história,
De viver nas sombras que deixam marcas nos nossos olhos,
Fechados mas atentos.
Os braços de luz e beijos que nos recolhem na paz de uma casa aberta à manhã,
Humedecem-nos, como nunca se ouvira cantar...
E as palavras pousam, indeléveis na poeira das janelas.

sexta-feira, junho 17, 2005


Amantes

Na deserta manhã da cidade,
Abandono-me ao desejo que escorre sobre ti,
Gemidos expulsos no que não se disse
Por palavras,
Limpo o esquecimento da noite,
Agarrando o que parecia querer escapar .

A boca...

Frases e sentidos serenados no peito,
Sublimadas no desejo de possuir sem rodeios,
A carne que abraçamos, tremendo...

A tua boca...
O denso travo salgado do corpo húmido,
Erguendo-se entorpecido,
Tropeçando no cansaço espreitando tímido...


As janelas revelam a nossa nudez perfumada.
Rimos...


*


“Um dia, enfim, só mais um dia
Para que possamos fazer amor livres
De outros compromissos
Até mais tarde, muito tarde
Até sublimes nos dissolvermos”


J. C Jerónimo, in “Só mais um dia”

quinta-feira, junho 02, 2005


Evadido

Desejo amotinado que se evade
Sem ruído, anónimo
Soprando a caliça presa nas unhas,
O amor suspenso na fúria cravada na tua muralha intransponível,
Em sangue expulso de feridas abertas sempre que é possível,
E que tu queiras
E que tu abras,
A malícia de saber que me prendes
Para que eu me solte
Vezes sem conta, as que te faço minha, por não seres
Nem tua.

Vento invernoso fustigante
Perdendo-se na demência de nada saber
Soçobrando,
Esvaindo-se no mar.

*

“Amei-te como um demente imanente
Num pedaço de lua,
Com uma flor de pudor lasciva
Cravada no meu sonho;
Fantasiei vidas sobre nós,
Cantei prantos de logro sem voz.”


Pedro Peralta in “Os Amantes Convexos”

sexta-feira, maio 20, 2005

Velas (enfunar)

Alongam-se as tardes reflectidas em ocre derretido
nas velas junto ao rio, altivas,
que não mais se recolhem
nem se dobram a qualquer sopro divino,
pontuando como proas orgulhosas
a pouca luz que ainda nos toca,
agitando-se no veludo das águas que não sossegam,
indo e vindo,
torrente incansável demorando diluir-se no sal que se aproxima.

quarta-feira, maio 11, 2005


Non si muova...

Almas cúmplices descortinando-se ao entardecer,
Mostrando-se em recantos de intimidade infinita,
Num jogo opiáceo de perpétua vigília,
Em movimentos de silêncio como fio de prumo

Cores magníficas sublimando-se,
Meias palavras crepitando,
O fragor de um dia maior, irrompendo debaixo de fogo
Queimando,
Corpos feridos da travessia, um escrevendo o outro
Como demónios à solta.

Naquela noite de Nápoles ouviu-se a mesma ópera
Um amor insurrecto, carnalidade absoluta,
Num pendor trágico e febril de um tremendo desejo,
Sem queixumes ou lamentos,
Apenas movimentos libertários, cintilando na penumbra.

segunda-feira, maio 09, 2005


As feras

Queimo por dentro em grave doçura,
Escondido na fresca claridade da multidão
Rugindo, ouvindo
As feras que habitam os nossos passos
Os risos vastos de uma fuga apressada do medo,
Do escuro da barra na fúria do inverno,
A pele irritada da poeira que nos cega.

sexta-feira, abril 29, 2005


O escuro da maré

Manto de algas errantes
Viajam altaneiras na crista, riscada a giz,
Imitam desenhos erráticos em ardósia líquida.

Os gritos ressoando nas paredes marginais,
O silêncio ecoando
Ameaçador sobre os vultos contrastantes na rocha,
Deitados num embalo esboroado e velho.

A angústia fustiga, perfura abaixo da pele,
Amacia as arestas da dor, em valsa lenta e triste.
O aguçado engano de medir o tempo em eternidade,
Engenhosa mentira, disfarce
Da dor cravada em arpão e ferrugem,
Surpresa.

A chaga aberta, para sempre inquinando as manhãs
Sempre que adormeço e acordo
Ouvindo o lento e escuro sonoro da maré,
Extinguindo-se sem brilho nas pedras,
Lambendo os pés sujos da cidade
Sem ruas e sem gente.
O tempo acaba quando morre o mar.

terça-feira, abril 26, 2005


Estio

O estio cola-se ao corpo ao som da rembetica em mais um Agosto febril longe de casa,
correndo os recortes mediterrânicos do Egeu, as madrugadas na tua língua acendida na proa do nosso espanto, como um farol onde começamos e acabamos.
Transpiramos ouzo à sombra da colina, descortinando a cidade imensa diluindo-se no calor do asfalto, presos na pele, em sufoco.
Luzem os corpos queimados, em sopro quente de verão nas ascendentes e descendentes de Kolonaki. Ombros descobertos, emudecidos no relento, escorrendo dos poros travo a fogo ateado, nuvens ardentes esfumando-se nos parapeitos, fluídas como vagas, como um dia qualquer, como sempre.
O mar ainda é longe e o ferry não espera por nós, para cortar o vento e as águas até às ilhas. Donos dos caminhos que serpenteiam, em sangue, como veneno, esperamos a brisa da tarde e o silêncio das cigarras, voando até nós como pássaros extraviados na quente planura de Atenas.

sexta-feira, abril 22, 2005


Pássaros (migração)

Esta dormente e insidiosa febre compassada,
Um perfeito bater de coração semanal,
Ritmada ânsia acompanhando o lento desenrolar das horas...

São talvez às dez horas os prenúncios de todas as sextas feiras.

Despida a pele dos medos e inseguranças,
Cumplicidades e mentiras tão narcóticas como os outros,
Pássaros sem lucidez
Migrando sem pouso do rio à cidade alta,
Sorvendo corpos em descoberta nudez citadina,
Na vertigem e delírio da exaustão nada acidental,
Breve fascinação furtiva.

Aproxima-se as manhãs arremessadas de véspera
E estamos já sem tempo antes delas.

segunda-feira, abril 18, 2005


Fotografia (música na casa)

Descobri a fotografia,
Imaginada,
deitada sobre a mesa,
esquecida a vontade que não me assiste,
adivinhando o tacto perdido, insensível,
a anca, a perna, esquecidas,
varrendo e mostrando as formas,
a tua boca húmida, prometendo
a travessia de um deserto no teu encalço.

A sala de água imensa,
amar em pele sobre a pedra,
em breve vertigem,
saliva e sal em desejo animal, cobrindo-te
em amarras fortes,
a voz atada num gemido fundo
sumindo-se na luz que nos atravessa sem pudor,
de vigia ao Porto dormente que desperta
no veludo do azulejo azul e branco,
quando finalmente a noite se recorta em foguetório,
acesos os corpos como um corpo qualquer,
flamejando com a música.

terça-feira, abril 12, 2005


Coisas da alma

Pássaros dormem ao vento
Ao som das águas costeiras,
Sussurrando palavras lúcidas, coisas da alma,
Nas alturas em que nos calamos como fantasmas
Com tempo para a solidão,
Sem silêncios incómodos,
Esperando apenas o fim da tarde.

Olhares outonais, seguem as voltas de um barco, sobre si mesmo,
Pensando e respirando como poucos,
Embriagados,
Ouvindo o deslumbramento, a cada nota cantada,
O som flutuante da maré subindo o cais,
Cobrindo a areia escura da margem.

A leve e insidiosa brisa do norte
Volteia e desfaz, em riscos, a planura do rio,
Mistura e espalha, cores e borboletas extraviadas,
Assinala a espuma que se esvai com a corrente,
Prega-nos as mãos, uma com outra, fixas
Na madeira podre e húmida do varandim,
De coração apertado, ansiando rebentar em fogo de fim de ano.

A luz escapa-se para as margens, renascendo,
Deixando-nos suspensos sobre a torrente que não se vê,
Acalmando, refreando a vontade de mais um beijo,
Olhos encontrando-se, brilhando...

As luzes na ponte dizem-nos que já escureceu.

Estranha manhã

(lá longe)

Estranha manhã aquela,
Quando o tempo mudou e as torres caíram
Sem o fascínio dos gestos teatrais
Numa vulnerável representação da aridez,
Uma alucinação promíscua,
Sem prefácio nem epílogo,
Subversão bizarra, sem sentido.

(aqui, tão perto)

A leveza grave da palavras, em desvario,
Perdendo-se nos jardins esquecidos
Abrem-se escancaradas, oferecendo-se,
Devorando-te sem quartel
Dedos de pó branco marcando os passos,
Implodindo, viscerais,
Escrita de seda, envolta em ti.

segunda-feira, abril 04, 2005


Alquimia

Amantes, abrigados debaixo do assombro,
Em surdina,
Acreditando em mais nada
Que o tempo esculpe-se no deslizar dos corpos,
Mármore alisado pelo toque, almejando
A poesia contaminada, subvertida
Em combustão lenta, deliciada, reinventando-se,
Alquimia de limalhas de ouro, soltando-se,
Libertando trechos de uma melodia,
De matizes escorreitas e ténues,
Risos feitos de bocados de céu,
Sem espaço às palavras.

Amantes, escondidos do medo,
Em silêncio,
Acreditando sobretudo na perda,
Que o arrepio seja ilusão, descuido,
Parando o tempo, mostrando a crueza,
A dureza fria da revelação, sentida,
O ouro mostrando-se pedra escura,
A paixão consumida, consumindo-se, apagando-se
A cinza espalhada com um sopro, desfeita
Sem rasto ou memória infame,
Esquecida.

Amantes, querendo,
Temendo o esquecimento.

sexta-feira, abril 01, 2005


Que os dias caíssem (outras horas)

As horas já não são as mesmas
e eu espero, no silêncio,
fugindo mais depressa do que sou capaz.

As horas, apressadas, desgastando
os trilhos que invento, os atalhos
nos escritos subindo a colina,
zunindo nas curvas,
perdendo-se na devoção de parar o tempo,
a cadência dos barcos, a simetria das ondas.
O compasso não muda,
insurge-se,
a ânsia, à espreita, tremendo nos lábios.

Disseste que chegavas a horas…

Foi só esperar que os dias caíssem
e se levantassem sobre os telhados abaixo de nós,
uma única vez.

Sem querer, as coisas mudam,
hora após hora, todos os dias.
Esqueci-me que a cidade não é a mesma,
devassada,
descendo a colina nos dias esquecidos,
nas mentiras de corpos transpirando o amargo dos químicos,
imperceptíveis, sôfregos,
sangrando os passos sem retorno,
o andar lento despenhando-se.

O atraso perpetua-se.

*

Inevitáveis, os teus cinco minutos,
arrancados em pêlo, dolorosos
implodindo e irrompendo,
o tempo, o suficiente para nada fazer,
subir o comboio na estação, na hora marcada,
o Oriente iluminando-se, as velas e as árvores,
a nova Lisboa acordando,
deixando-me solto, levado pelos ponteiros,
seguindo incansáveis a sucessão de outras horas.

No escuro, ao fundo, deixámos de bater...

terça-feira, março 29, 2005


Furor das noites cheias

As luzes que tremem ao fundo definem o horizonte,
Um esplendor acetinado em perpétuo furor,
Intermitente, entre a cadência da chuva e da poeira,
Como um latejo quebrado de emoção.

Um ofegante e voraz quarto crescente desvenda,
Revela, em contemplação ferida
O pontão desafiador,
Outrora escondido no rebentamento furioso, avassalador,
Agora em doce calma aportada, esquecendo a deriva
Como o vagar das marés baixas,
Deambulando em exíguas memórias, onde ardem suspiros.

No sufoco do turbilhão,
Fulminante e fulgurante,
A euforia lancinante de amar,
Que não acaba nem morre como um instante,
Foge à corrosão avassaladora do tempo.

A brisa lambe em arrepio a pele descoberta pela Lua,
Tocando as margens e os estilhaços de luz flutuantes,
Voando em euforia, nos risos soltos das noites cheias.

segunda-feira, março 28, 2005


O perfume e o incenso

Deixo de morder...
O áspero mordido dos lábios,
Fio de sangue escurecendo este remoto canto,
Lavando, sem enganos,
O espanto do vermelho faustoso do amor,
Baixando guardas aos meus medos,
Receios esconsos e soturnos, escapando-se,
Atordoados com o sopro do oceano,
Entornados com a luminosa manhã,
Clareando a lucidez perdida
Amargada pela borrasca.

O perfume e o incenso,
Descendo as cordas soltas do barco que parte,
Como aridez efémera brotando
Do firmamento que se completa,
Embrenha-se, dilui-se sem tempo
Em nós e nós no mundo.


*

"E eu tinha, finalmente, todo o tempo do mundo - talvez seja isso o amor."
António Mega Ferreira in “Amor”

quarta-feira, março 23, 2005


Almas Guerreiras

Uma chuva silenciosa de folhas outonais
Agita bailados guerreiros suspensos no ar,
Polvilhando a floresta cintilante,
Reacendendo a nossa errância,
Numa cadência pulsional,
Clarividente,
Vagabundeando nas mudanças que o mar desenha na cidade.

Cicatriz

O desafio maior...
Descobrir o rasto da dor,
A impressão em carne viva, de sangue e tatuagens,
De cicatrizes que as pontas dos dedos desenham no teu rosto...
Afectuosas preciosidades...
Que te mutilam e escondem,
Que fingem ser o que não são
E que se mostram,
Como caracteres vermelhos em papel branco,
Um sortilégio, uma inevitável condenação,
Difícil de esquecer.

Mas tudo se ilumina e renasce.
A água gira e corre, moldando o mundo,
Criando e inventando o nosso riso,
Esperando o suceder dos dias,
Expectantes,
Pela memória que ainda não temos,
Pelas margens que o rio ainda não tocou.

segunda-feira, março 21, 2005


Todas as tardes são inúteis.


Diluídos na intimidade da multidão,
Antes de respirar, suspirar as palavras,
Últimas, derradeiras,
Sorrindo...

Os inebriantes enganos que já conhecíamos,
Elevados, em olhos fechados, à memória,
Entregue e convocada em delírios,
Dos corpos reféns de volúpia,
Desmaiando de prazer, serenos,
Incandescentes e transbordantes,
Arrancados ao suor salgado da pele,
Somente respirando, no minuto seguinte à insensatez,
Em todas as horas que não me recordo,
Esperando-te no extremo do mundo,
Com hora marcada,
Na secreta esperança de naufragar,
Passo a passo, estremecendo,
Arrepiando caminho.

Mas, a sinceridade perdeu-se
Nas minhas palavras,
Julgando-as minhas e sinceras.

Invasores


A tempestade, única,
Conduz ao promontório,
Veloz e impaciente.

Todos os enganos são previsíveis,
Irresistíveis,
Quais mãos que nos conduzem,
Quentes e melosas,
Envolvendo, entorpecendo.

A anestesia da calma,
Canto de sereia magicamente administrado,
A atracção da tormenta,
O medo do naufrágio,
Lento afogamento nas águas revoltas, em fúria,
Na culpa, censura.

E o mundo das sombras,
Incontrolável,
Selvajaria da alegria despoletada,
Ebulição estonteante ,
Fustiga-nos
De risos bárbaros implacáveis,
Invasores, taciturnos
Vertendo memórias...


A terra treme debaixo dos pés,
Esbatendo a respiração,
Sem alma, consciente.

O inferno são os outros...

sexta-feira, março 18, 2005


Sopro da quietude

Nesta noite, escrevo e esqueço, na areia que suja o terraço, as palavras que quero ver escritas na vida que se extingue ao fundo e, nos teus olhos, sem chama ou marca brilhante, distinguindo a ressonância dos risos distantes no tempo, lambendo as feridas de unhas e mãos tenazes no braço na hora de sair, a culpa que se agarra às desculpas e ao arrependimento de te ter aqui e perder-te sem nada dizer.
O silêncio acompanha-te, intencionalmente, disfarçando o eco das escadas de mármore, abrindo-se a mim o espanto e o flanco à tua ignorância quanto à minha existência.
Apenas o silêncio ensurdece a ausência de ímpeto, soçobrando a raiva perante o crepúsculo, rasgando o céu, daqui ao horizonte.
No silêncio compreendi que já não te ouvia e já ria da raiva e pouco nexo com que subias as escadas. Já fazia sentido a tua falta de sentidos.
Ai, o mundo lá fora... Jaz amarelecido no canto dos livros, onde o gato se aninha, rasgando os periódicos sem hesitar. A cidade continua indiferente a nós. É apenas silêncio, rápido e avassalador, tortuoso e frio, ferindo-me fundo, gritando, magoado e soprando a calma de antes e que não voltaria mais.
Já nem sei se Lisboa ainda tem telhados, porque não me dizes, nem o que eu quero ouvir. Tiraste-me a voz, como o sol deixou de aquecer o meu pátio, tapado por um silo branco e devorador.
*
Nem me apercebi de que entretanto saíras. Em surdina, não bateste a porta. Não tinhas moedas no bolso nem saltos altos e ninguém te cumprimentou.
No mais puro dos silêncios deixaste-me à demente e lacónica ausência de nada saber. Vil e perversa, não me disseste como vai o mundo lá fora.

*
“Noites em que tuas mãos aliadas,
Como que em prece
Far-me-ão cerrar os olhos
Por um breve instante...
E eu deixarei sair de meus pulmões
O sopro da quietude.”
Carlos Feitosa Tesch in “Nesta noite...em todas as noites”.

Profecia

A loucura escreve melhor,
Insinua-se suavemente na alma,
Em travos de surpresa a cada esquina,
Sem pompa embasbacada,
Ensaiando irreverentes coreografias
Em fúria e solidão tumultuosa,
Povoando a penumbra onde a luz se condensa num rumor,
Como um piano dissimulado num canto recôndito,
Onde a tragédia é mais indiferente e fascinante,
Onde cheira a ausência e demência
E a obsessão que se entranha,
Condenam-se,
Num incestuoso medo de se amar a si própria.

quinta-feira, março 17, 2005


Manhã de Veludo

Carmin e seda
Cai como veludo
Na chuva da manhã
Inesperada
Pronunciando as formas
As curvas da calçada
Ocultas com embaraço
Velado
Mas com espanto
Do Carmo e a Trindade
Caindo a seus pés
Corando
Como maçãs flutuantes
Que não trinco
Não quero desfazer o modelo
Nem apagar os holofotes
Que iluminam teu andar
Flamejante e incandescente
Tal fogo de Agosto
Consumindo o mundo
À sua passagem.

sexta-feira, março 04, 2005


Ouvi-te, à noite

dar sentido ao imenso vazio
lá dentro, fico à espera de nós
oportunidade rara e audácia
repousar nos cambiantes da voz

não evito um trago de desilusão
de nascer à flor da pele
ausentando-se um suspiro no escuro
como um piano na escuridão

falar do meu mundo, respirar
voo rasante de melancolia
delírio febril alimentando-se de si próprio
transgredir, sentir a tua voz descarnar

errância e desacerto dos passos
as árvores que fogem na janela
esbanjamento e desvarío
tu falas, preversa, da consciência dos teus traços

arrojada e vil proeza
a vassalagem ao momento
a sonoridade livre e consciente de ouvir
que me amas, mas sem certeza.
que me prendes e lapidas
com crueza.

sexta-feira, fevereiro 25, 2005


Dream on

Já não há azul como o teu
as luzes que cintilam e riem como tu,
as pernas insidiosas, o ombro esculpido pelo mar,

inocentes os dias em que te vejo assim,
sem querer, sem desejar parar, sem ti...
Sem ti é que não é nada, o vazio que me assusta
o desamparo de não ter mar.

Mesmo tremendo, no frio que me afronta,
e eu não desisto, espero assim mesmo que saias da loja.

Não fosse Dezembro e seria diferente,
escolhia as palavras que tens escritas nos olhos,
minuciosamente escolhidas e ditas,

que a Rua Augusta é o S. Carlos da tua ópera
e o Natal é tão bom para me declarar como o Verão.

Que palavras?

Aquelas,
aquelas com que sonho e não te vejo,
mas sei que estás lá.

Esquinas

Pelas esquinas de lioz passam os mundos em contemplação,
Nas noites longas de alívio pelo fim do inverno,
Desenhando pegadas nas paredes pintadas ainda ontem,
Como que escamando as capas da cidade,
Tão ínsitas como a alegria que trazemos dentro,
Que se dilui na monotonia do suceder das estações,
Cada vez menos previsível e aliciante,
Como se já não fosse excitante roubar um beijo,
Em surdina, nas escadas do teu prédio sem luz.

Nas margens da nossa esquina
Onde confluem e se separam o negro das tuas palavras
Tão amargas quanto doces são os olhos como ainda te vejo,
Não há brisa de verão nem chuva de inverno,
Nem voltam as noites em que ríamos “porque sim”,
Sem gostarmos ainda mais de sermos químicos como nunca,
Como se o riso tivesse de ser omnipresente na nossa alegria,
Como se não notássemos que o riso sempre presente nos sufocava,
Que nos tornámos dormentes ao nascer do sol,
Que nos tornámos ausentes das manhãs junto ao rio,
Que nos amamos sem termos noção um do outro,
Que, sabendo isso, já não sabíamos rir de outra forma.

E tudo porque te apaixonaste pela madrugada,
Esquecendo que eu voltara para trás,
Numa manhã em que não esperei pela manhã,
E não dobrei a esquina contigo.