sexta-feira, novembro 21, 2003

Perdidos

A maresia de Setembro faz-me bem. Arrefece o espírito, quente e inquieto, muito subtilmente, sem molhar. O mar no início do Outono, revolto e furioso, escuro e misterioso, faz-me arrepiar perante tamanha demonstração de poder e magnitude de uma beleza serena. Se existisse um lugar de refúgio que pudesse chamar meu, seria um qualquer junto do mar.

Ao fundo, sem distinção, mar, céu e chuva recortados por raios e ecos que racham o silêncio do horizonte. As nuvens passam depressa, espalham-se à passagem, unem o este e o oeste, anunciam que não tardará a pingar. Não tenho abrigo.
Não sei há quanto tempo venho a esta praia, escondida, batida pela tempestade, agreste e selvagem, nem quanto tempo levo a perceber este sabor, a entender este ruído. Poderia ter nascido aqui, ter sido outra coisa em outra vida, um grão de areia, uma concha, ou uma duna feita grãos de areia unidos na solidão de nada serem uns aos outros, além de serem todos iguais na forma. Uma duna movendo-se lentamente ao longo da costa, ora crescendo, ora alongando, vendo as plantas crescendo e morrendo, acostumando-me à ausência de eternidade. Facilmente compreenderia que quem não se desilude é porque não ama e não ama para não se desiludir. Tudo o que fizesse perder-se-ia no ar, como se pertencesse a uma qualquer e pretensa ordem natural das coisas.

Sigo o caminho, olhando os carris, evitando a madeira podre, os ramos secos. O vento corre na areia, levanta as folhas secas. De um lado o mar, do outro as arribas, o sol não tarda a desaparecer, para lá da vista, depois do horizonte. O barulho das ondas diminui, distancia-se, as gaivotas deixam marcas pequenas na beira-mar. Pescadores contemplam o mar, já cansados, enquanto crianças brincam com os peixes deixados na beira da rede. Deixo que anoiteça, que o sol se consuma, lindo, sentir o frio da noite, o arrepio do vento, a areia fresca.

Trouxe-te aqui uma vez. Se debaixo daquela lua, as sombras me podiam enganar, o sentido que o horizonte tinha não podia esconder a simplicidade de uma emoção. Se no escuro, apenas o medo se mostrava, foi na penumbra que me alheei, sem pensar ou a pensar que não o deveria fazer, em que a única referência é o barulho do mar, um eco desconcertante, reconfortante, assustador. Tão assustador como deixar a areia correr entre os dedos, que acaba por se perder no mar. Como se tu, estivesses na minha frente, não por acaso, não por medo, mas porque assim seria.
E isso agora dá-me medo. A praia está deserta, e eu…. Eu, estou aqui, deixando areia escapar-se por entre os dedos. E porque, não só tu, mas outros também não estão.

Perder-se alguém é muito triste. Pior do que se tivesse morrido. Somos obrigados a ver todos os dias, nos mesmos sítios que eram nossos, a alma viva de quem já não nos diz nada. Perder amigos é penoso, mas vários no mesmo dia tem algo de tão dilacerante que chega quase a ser indolor. Perdem-se e não se trocam como outros elementos do nosso plano emocional.
Pior ainda é termos consciência de que se entra num caminho sem retorno, por nossa própria imposição e voltar atrás não é alternativa, embora, no fundo, nos apetecesse. Mas não queremos, e eu, irritado porque tenha a plena consciência que luto contra caminhos que outros escolheram conscientemente, demasiados ofuscados com o seu horizonte. ..

Fico só na praia, esperando os relâmpagos que o céu escuro prenuncia.
Perfurando a tua ausência

A casa há muito que está fechada. Os passos há muito deixaram de se ouvir e gastar o soalho do alpendre, vestido de folhas secas e ramos abandonados do velho castanheiro que teima em crescer no jardim.
Encostado ao carro, espero uns momentos para admirar a ausência de vida no penhasco, para ganhar coragem e atravessar o o caminho de ciprestes até à clareira defronte da porta, que sei que não tentar sequer abrir.
Pedi-te para ficar e esperar fora dos domínios do que queria esquecer. Compreendeste, como sempre. E aceitaste.
O barulho da porta do carro assusta os pássaros nas árvores e ecoa pelas falésias até ao meu peito, batendo ao ritmo dos sapatos esmagando tufos de erva seca, da chave rodando na ferrugem do portão, denunciando que há muito teria sido deixado aberto.
O barulho do mar tornava-se perceptível e presente, ao fundo do pinhal frio atravessando a fina camisola de malha que trazia, não sei bem porquê e agora não me lembro, porque me esqueci que saberia que assim seria.
Desde há umas semanas que não conseguia dormir e a tua presença era demasiado constante para que pudesse levar uma vida normal, sem suores frios, sem ataques de ansiedade, sem pressa para saborear o meu café ao fim da tarde lá na avenida. Pensava que tudo tinha sido enterrado aqui, que aqui tudo tinha sido discutido e resolvido, que fechando a porta da nossa casa, deixava as minhas inseguranças seguramente presas longe do meu precário equilíbrio, continuamente devassado.
Passei ao largo alpendre, dos canteiros de rosas dominados por ervas e mato e procurei as escadas da falésia no meio das silvas, tentando lembrar-me do sítio onde nos vimos pela última vez, algumas semanas, meses atrás, já não sei.
Descobri a velha passadeira de madeira que nos levava ao miradouro e à casa de inverno, onde observávamos e admirávamos o forte mar de inverno, comendo a areia, deformando a praia. È o lugar que melhor me recordo de estar contigo, os dois a sós, a última, onde me pediste em casamento, eliminado de vez a minha vontade de amar em liberdade.
O cheiro a abandono era intenso e insuportável, mas garantia-me que ainda poderias lá estar, que permaneceste presa ao que era nosso, libertando-me para construir o que era meu, talvez obrigando-me a fugir para outra prisão, não sei. Queria apenas assegurar que a tua presença não me teria seguido para onde fui.
A porta estava aberta, mas ao fundo da sala, junto à lareira, estavas lá. Ainda estavas lá. Apesar de tudo sempre altiva e arrogante, mas continuavas como quando te deixei. Sofrendo, clamando perdão, aceitando os fracassos e a inglória luta para me destruir. Nada que que não se resolvesse perfurando o teu orgulho até à ausência de coração, o que, curiosamente, também sangra, dói e mata.
E matou na perfeição, sem falhar, como uma ciência exacta, embora de variáveis incertas e muito indeterminadas, quase improváveis, como o facto de continuares imóvel, na mesma posição, mãos sobre o peito, de camisa tingida, entre a lareira e o sofá, rodeada de bichos e decomposta sem tréguas. Provocaria enjoos, não fosse a satisfação de ver que o meu passado estava morto e decomposto, como que por magia.
A gasolina ainda estava ao teu lado, mas na altura não julguei mereceres a purificação da chama nem pretendia alertar os espíritos à solta na praia nesse Verão.
Receando ter de te ver aqui, ou todos os dias quando acordava ou dormia, lancei-te o fogo, não para te purificar mas para te castigar, para queimar qualquer possibilidade de dignidade que pudesse ainda residir em ti. Assim mesmo, sem perdão, tão facilmente como ignorar o que não sabemos.
Muito devagar, mãos nos bolsos, subi as escadas, atravessei o jardim sem olhar para a casa, fitando o carro ao fundo da alameda descuidada e vazia.
Ainda esperavas por mim, embora ja cá fora, fumando compulsivamente. Se bem te conhecia, não era o primeiro cigarro.
Beijei-te sofregamente, inesperadamente, mas gostaste. Sem medos, sem estigmas, apenas amando, abri-te a camisa, as calças, exibi-te a minha excitação, a minha vontade e encostei-te ao carro, amando-te, rindo, libertando gritos em liberdade, por longos momentos sem tempo.
Abriste-te os olhos e a tua boca desenhou as palavras que me voltariam a matar, a morrer por dentro, a desejar nunca ter amado.
- Queres casar comigo? Disseste chorando de alegria.
Foram as últimas palavras que ouvi da tua boca, antes de te ver desaparecer e soçobrar diante mim, horrorizada com o mal que me infligiste, com a tua crueldade fria e com a faca que perfurei a tua ausência de coração.
o sopro

Sonhos e estilhaços mentindo,
Ferindo e fitando a inquietação,
Esvaídos em medo e a angústia.
A espera dilacera e antecipa,
Contamina por partes o sopro,
De raiva, rancor, medo.
A morte ribomba, atordoa, impõe-se,
Os tambores fraquejam as preces,
Observam o inevitável,
Com escárnio e desprezo
Pelo suspiro, o último,
Sem fôlego, sem razões.
Sonhos, ao arrepio de vento e água,
Molhando, escorrendo, tocando,
Risos, sem sombra nem recanto escondido,
Clareando a penumbra subterrânea da ordem,
Imposta, por momentos esquecida,
Dolorosa percepção assassina da vingança,
Sádico fervor, ódio cortante,
Devorando entranhas
Expostas, sem ventre nem esconderijo.
A terra, em sangue, suplica,
Estranha o incómodo, rogando,
Abrindo-se em páginas soltas,
Indicando o caminho de sulcos e pedras.
O retorno, respirar acima da água,
A marcha, com ódio, desespero,
A demência da putrefacta carne amada,
Aroma de jasmim em flor
Queimando os olhos e ardor,
De quem se curva e turva.
Rasga o peito, beija a morte, procura o sopro,
Fugindo, sentindo
O ar, a água correndo sobre as mãos,
Tingindo de rubro, lágrimas e saliva,
Os olhos mudos e quedos
Como sopros e uivos de corações sem alma.
morremos


Mais um dia. Sempre o mesmo, sempre o mesmo quarto, as mesmas pessoas, às mesmas horas, dando-me as mesmas coisas, com as mesmas cores, os mesmos sabores, dizendo-me o mesmo que ontem. No corredor, as pessoas habituais, fazendo gestos dementes, com quem não se pode conversar, por dizerem sempre o mesmo.
As paredes iguais, brancas, um branco higiénico e maçador, monótono, reflectindo a mínima luz, todo o dia e noite. Só o pôr-do-sol nunca mais vi, por ser atrás das árvores, e não me deixarem contornar o edifício. Já tentei subir às árvores, mas valeu-me dois dias em clausura no quarto, num completo afogamento em medicamentos.
O jardim, nada tem de diferente dos outros que vejo para lá das grades. É apenas o que medeia o meu quarto da avenida, depois das grades. Fascinante e intrigante, um mundo de pessoas, para lá e para cá, cada uma na sua própria vida, atarefadas ou a passear, correndo, sempre correndo, não se sabe bem para quê. Algumas já conheço, por estarem todas as manhãs na paragem do autocarro. Espreito-as por entre as folhas das sebes, sem que elas me vejam. Sei quando têm roupa nova, quando estão tristes, quando têm mais pressa. Ás vezes gostaria de falar com elas, mas tenho medo. A avenida é confusa, barulhenta, selvagem. Assim que penso em sair, imediatamente desisto e volto para o meu quarto.
Depois, é sempre o mesmo. Escrevo. Escrevo compulsivamente, sem parar. Assim posso abstrair-me desta monotonia asfixiante e aterradora, pois não consigo viver sem ela. E por me ser tão essencial acredito que se parar ou sair lá para fora, poderei morrer fulminantemente. Sinto que devo escrever sobre tudo o que possa apreender nos meus breves instantes de paz. Não suporto ver as folhas brancas. Se começo numa página, rapidamente cubro-a, da primeira à ultima página, margem esquerda à direita, inferior à superior.
Algumas delas foram-me tiradas. Eu sei. As enfermeiras e alguns médicos rasgaram páginas. Não para ler. Para rabiscarem nos intervalos para o lanche.
Escrevo e falo com as pessoas que saem da minha cabeça. À noite falo com as pessoas que vejo todos os dias, mas que há noite não estão na paragem. Mas a essa hora posso falar à vontade, sobre tudo, sem ninguém interromper.

Há uma enfermeira que fala comigo, de um modo diferente das outras. De noite, ela entra no meu quarto e, enquanto finjo dormir, ela afaga-me o cabelo, fala de um modo doce, tranquiliza-me. Quando tenho pesadelos, ela aparece imediatamente, conversa comigo. Quando tenho a cabeça cheia, parecendo que vai rebentar, falo-lhe dos meus pensamentos, do que me atormenta, mas que não consigo exprimir de forma alguma. Choro por nada, tenho ataques de ansiedade, por nada. Penso em perguntar-lhe porque estou naquele quarto. Mas desisto. Tenho medo que me responda que já não é necessário, que já posso sair, que já posso conhecer a Avenida e falar com as pessoas que vejo todos os dias. E tenho medo. E calo-me.
Ela parece preocupar-se apenas comigo. Reparei que raramente fala com as outras pessoas, as outras que passam nos corredores compridos, com olhares vazios, sempre olhando para o fundo, nunca para nós.
Algumas noites, não conseguia dormir e andava de um lado para o outro no quarto, perdendo os passos no eco do corredor. Os medicamentos não faziam efeito. Continuava a fingir que dormia. Tinha medo que me mandassem embora, que a enfermeira não mais conversasse comigo.
Perdia noites inteiras à espera que o dia viesse, com medo de adormecer, com medo de sonhar com coisas sem sentido. Tinha medo de falar sobre eles, tinha medo de delirar e que me diagnosticassem algo próximo da demência. Isso significaria que me poderiam prender naquele quarto horrível e eu queria sentir que estava ali porque queria, enquanto me sentisse bem, enquanto não perdesse este medo irracional ao exterior.

Mas naquela noite, havia mais ruído do que o habitual. Ouviam-se mais vozes, muitas, sobrepostas. Espreitei pela janela e reparei, por entre as folhas e ramos das árvores, luzes e gente, falando alto, rindo, cantando. Vinham do exterior, da avenida, para lá das grades. Abri a porta com cuidado, para evitar os rangidos, pé ante pé, percorri o corredor, interminável e vazio até à saída. Não havia ninguém.
Saí para o jardim. Estava húmido e caíam algumas gotas dos beirais e das árvores. Os candeeiros continuavam avariados, pelo que consegui chegar às grades sem que ninguém me visse, não obstante ter tropeçado nos vários canteiros que encontrei pelo caminho. Afastei as sebes e espreitei pelas grades.

Por entre o silêncio que se instalou, apenas uma pessoa virou a cabeça para as grades onde eu estava. Não identifiquei quem olhava, mas quem o fazia sabia de certo quem eu era. À medida que se aproximava, senti uma ansiedade anormal. Comecei a pensar a uma velocidade alucinante.
Reconheci. Não queria admitir, mas reconheci quem se dirigia a mim. Já não me controlava, voltar para trás e fugir não era solução, o meu quarto branco e monótono já não servia de abrigo, já não me protegia dos meus medos, da minha falsa segurança, que se espalhava no chão como um colar de pérolas desfeito.
Como se a minha vida acontecesse naquele momento, como se tudo se resumisse a breve instantes, nos mesmos em que revisitei a minha vida, os meus sonhos.
Quanto mais se aproximava, sentia que não havia volta a dar, que estava à beira do precipício, decidindo enfrentar o que quer que fosse, ou cedesse à facilidade e saltasse.
Sinto uma mão aparando-me para descer das grades. A enfermeira. Trazia um casaco quente para me confortar, olhando-me com carinho e atenção.
Do outro lado. Tu.
Tu
Tu.
Tu.
Ali, sem falar, sem emitir um som, sem que eu pudesse ouvir o teu coração bater, depressa ou devagar. Esqueci-me do teu timbre de voz, dos teus risos, dos teus movimentos. O que queríamos falar, o que eu não dizia, mas gritava por dentro, com todas as minhas forças até à exaustão. Tremi, de frio, de qualquer coisa. Meti a mão no bolso. Respirei fundo. Tentei ouvir o meu coração.
Nada.
Deixei de ter frio.
Nada.
Morri.
Deixei de ouvir os aplausos. As vozes desvaneceram-se lentamente até não as ouvir mais. Mexias os lábios mas deles não percebi o mínimo som, uma única palavra.
Estendeste os braços por entre as grades, tentando alcançar-me, mas sem sequer senti algum toque, por mais leve que fosse. Morri. Naqueles breves mas intermináveis momentos em que me tentava aperceber do que se passava, enquanto a minha vida corria vertiginosamente em frente aos meus olhos. Já nada importava, já nada sentia, já nada queria, como se nunca tivesse pensado nisso.
Agarrei-te na mão, puxei-te contra as grades, e enquanto te segredava ao ouvido “ Tu não existes”, espetei a faca que roubara na cozinha, no teu peito.
Como se o tempo tivesse parado, como numa dança, apercebi-me dos teus pormenores, da forma como cada parte do teu corpo se moveu. Os olhos abertos, falando, a boca semicerrada, o corpo girando graciosamente sobre si mesmo. As mãos no peito, perdendo a segurança, enquanto tentava segurar um jorro de sangue, que empapava a roupa, salpicava o passeio. Se alguma coisas querias dizer, ficou contigo, enterrada no teu peito, com a minha faca. Não queria ficar com mais nada teu, nada que me fizesse pensar em viver com esperança de que tu aparecesses e me dissesses ou desses algo.
A enfermeira largou-me. Não gritou, não se moveu, não disse nada. Simplesmente fitou-me por segundos, observando-me surpreendida.

Depois disso o habitual. Um corpo no chão, sem vida, pedindo atenção, pessoas e mais pessoas correndo como loucas, sem saberem ao certo o que fazer, comentando, dando largas à imaginação, inserindo na sua vida sem vida, um episódio grotesco mas excitante. E eu.... Eu saí calmamente para a avenida. Já não me assusta. Morri e agora tudo o que se pudesse passar, não passaria por mim.


P.S: Recebi hoje a notícia de que foste enterrado no cemitério do Alto de S. João. A enfermeira disse que foi uma cerimónia linda, com muita gente, vieram pessoas de Barcelona, que estavam todos vestidos de preto, que lançaram muitas flores sobre o teu caixão, não obstante os coveiros terem tido imensas dificuldades em prosseguir com a descida à terra do teu corpo, uma vez que chovia copiosamente e a cova encheu-se rapidamente de água e lama e pareceu-lhes mal afogar uma pessoa morta. No entanto não foi vergonhoso, pois todos fugiram a abrigar-se da chuva e ninguém viu o insólito acontecimento.
Contando com o ciclo da água, é provável que a água onde te afogaram fosse proveniente do Tejo, pelo que, além da vista magnífica, ficaste bem junto do rio que tanto gostavas.
Acrescento que, como também morri, vou deixar de escrever, e já não me importo que as enfermeiras levem estas páginas. O facto de serem brancas e imaculadas já não me atormenta. Podem perfeitamente permanecer em branco.
gato e rato

Em cubos, o açúcar desfaz-se como água ráz violeta no céu e ao fundo do corredor, vermelho - sem intenções óbvias – a divina cumplicidade de Deus e o Diabo num corpo só, rindo e corando, sem nesgas de penas ou provações, rebola-se numa aparente simplicidade e inocência da minha cama.
Do sofá de veludo azul apenas vejo uma nesga de pecado, aquela que me concedeste, afastando censuras por patente gozo depravado e voyer, que não me permitirias ter.
Por mim gatinharia pelo chão de madeira envernizada, duplicando no reflexo o meu divertimento, partindo para conquistar, novamente, esses domínios que insistes reclamar como inexplorados.
Dizes, sem levantar a voz, que não devo sair de onde estou. Aceno que sim, concordando, apesar de não me veres e continuo a beber o meu café, adivinhando o que não irás fazer.
A luz já não entra na janela, o relógio marca a mesma hora há cinco horas, numa em que arrancaste a ficha da parede, em cada dia desta semana, ultrapassando os limites do cansaço e da agonia do excesso do prazer, como casas de veludo e talha dourada, em cada ínfimo ponto que pudesse ser preenchido.
A chávena de café já transbordava, como eu, preenchido de antecipação, estupidamente, ou inteligentemente, como um jogo. Sabia perfeitamente onde tudo iria acabar, e lembrando como era, fazia por esquecer, extasiado por surpresas melhoradas, sempre que as mesmas aconteciam.
A musica apareceu, sem que desse por isso, mas encostou-se a mim como um gato, ronronando. “Quiereme” da Núria Fergó não era bem o que eu queria, mas nada como salero de fim de tarde num quinto andar da Sétima Colina.
“Quiereme, como se quiere por primeira vez, quiéreme, quiéreme para lo resto de la vida.......” e por aí adiante, percorrendo o corredor, sem parar, pisando tudo o que atiraste pelos curtos intervalos em que abrias a porta, rindo, sorrindo, provocando, com saídas esporádicas e rápidas, como um jogo de gato e rato que sempre gostei de jogar contigo, desprevenido, à mercê da tua militante loucura, nada virginal, sem tremores de primeira vez, onde eu podia ser rato e gato, conforme o momento e a disposição. Mas gostavas de ser gato de vestido curto, fosse em Paris, Praga ou Atenas, nunca em Nápoles, Nice ou Barcelona. O teu estranho e excitante fetiche da proximidade ao poder não nos deixava dormir numa cidade que não fosse capital, num quarto com janela com vista para o poder.
Fechada no quarto, matando-me de antecipação, sabias que esperaria o tempo eu fosse preciso, sabias que não eram perdidas as horas de preliminares, em que, invariavelmente, chegarias sem que eu ouvisse, tirando-me o cigarro da boca, fechando a janela sobre o Palácio de S. Bento, já iluminado.
Ao fim de cada noite

Ao fim de cada noite era outra pessoa que cruzava as portas do teatro e se dirigia a mim. Era outra pessoa que me dava o mesmo beijo todas noites, naquela rua estreita e corrida a vento, que adormecia com o passar das horas até ao silêncio possível da cidade. Era por outras que perdia a conta aos cigarros e às pessoas que trazias contigo, todas as noites, em ti, e não sabia bem explicar ou esclarecer as minhas dúvidas quanto à aceitação ou recusa da existência delas na minha vida.
Não vivíamos sós. O 4.º andar da Rua da Prata era abrigo para muitas penadas de escrita, tinta sacramentada no papel desvendando dramas difíceis de suportar e impossíveis de controlar em quatro meras divisões, num único espaço, numa única pessoa. Estavam lá a toda a hora, falavam, cantavam, gritavam, beijavam-me, faziam amor comigo, sexo, sobrepunham-se ao rumor do trânsito nas ruas. Mais presentes e pressentidas que fantasmas, arrastavam os dias como se fosse natural que tu fosses elas.

No dia em que peguei nos teus papéis e os atirei pela janela, não estavas lá. Nem hoje sei. Não estarias só. Estarias demasiado enebriado com tanto conhecimento, tanta experiência e pensamento numa só pessoa que te esqueceste que eras só uma, tu, só com tanta demência, louca por tanta oportunidade, viver de uma só vez todas as emoções de uma vida. A tua sede de viver a representação atingiu contornos para além do imaginável. Passaram a ocupar todo o teu espaço, sem margem para perceberes, na realidade, a existência de uma realidade.
Noutra altura rasgaria as tuas vozes, as tua caras, com pressa de as não ver ou ouvir, a cada instante, a cada interminável segundo. Naquele dia, reuni cada um deles, os teus papéis espalhados por cada canto da casa, como que vigiando, como que deixando companhia para a minha solidão forçada e juntei-os num enorme monte, metodicamente empilhado. Abri a janela e, um a um, tive o prazer de ver voar cada um deles, desde a janela à rua, ao rio, sendo definitivamente esquecidos em outros, mais banais, no chão, sujos e amarrotados. Podia jurar, que mesmo assim, os ouvi rir.

Soubeste do sucedido porque voltaste mais cedo e assististe ao meu deleite indisfarçável. Não me apercebi da tua reacção nem da tua presença.
Não voltarias. Estarias mais dois meses em cena, no teatro ou em qualquer rua batida pelo vento, acabando de te destruir e esquecer nas personagens que promoveste, criaste e levaste a viver contigo, anulando-te irremediavelmente.
Dos teus papéis, guardei apenas dois. Duas poesias escritas há não sei quanto tempo, quando ainda eras tu, representando a tua vida e a imagem que eu tinha de ti, quando vivias comigo. Só nós dois, ao fim de cada dia.

quarta-feira, novembro 19, 2003

Sobre a nossa cidade

O barulho dos carris despertou-me, finalmente, de um estado de apatia e sonolência, desde que deixei Barcelona e Madrid para trás.
Na confusão das malas na saída, a minha prendeu-se com a seguinte, de uma forma inexplicavelmente complicada, impossível de soltar. Recordei-me de Agosto nas Ramblas, tu e eu, como nunca, para sempre, desse por onde desse, quando prometemos nós em troca do mundo, por nada que nos separasse.
Acabei por chegar a um acordo, como sempre. Tive de partir a partir a pega da mala, nada de novo, para que tudo voltasse ao normal. E sem me conseguir conter, acabei a chorar, a ver os quadros das chegadas e partidas desfocados pelas lágrimas, sem ver a porta de saída, sem ver nada.
Não consegui fechar os olhos no táxi, pressentia os lugares, cada vez mais próximos, uma ansiedade que me rebentava o peito, de tão grande que era, que me dominava, impedia-me de pensar com razão, nas razões que me fizeram voltar, porque razão deixei Barcelona, porque motivos voltei a Lisboa, depois de tudo o que tive de fazer, deixar de fazer, omitir, mentir, desistir, só para perseguir um sonho, o nosso, contigo, noutra cidade, distante, mas não muito, diferente, mas não o suficiente.
Quase me esquecia de dizer que não era aquele o caminho, que era outro, que não ia para casa, a minha, que depois foi nossa, que agora não existia, a casa que vendi depois de lhe termos pegado fogo numa louca festa de despedida, muito bebida, muito inconsequente, muito nossa, ao som da música que agora mesmo passa no rádio do táxi.
Decidi sair na Baixa, na Rua da Conceição. Um eléctrico barrava-nos o caminho, preso num trânsito infernal, mas normal de tão habitual que era, como as tuas desculpas, as discussões por nada, que eram tudo e por tudo que não era nada. Mas ficavas tão bem, com cara quase a explodir, que ria sem parar. Como se fosse uma fuga à rotina que, forçadamente, querias que entrasse pela janela. E eu não percebi. Ou não quis....
Preferi fazer o caminho a pé até ao Hotel no Chiado, com a minha única mala. O resto ficou na Plaza de España, onde esperei que tivesses a decência de, pelo menos, me levar à estação, quanto mais não fosse para te veres livre de mim, para teres a certeza que me ia mesmo embora, como se me levassem de limousine para a forca, enquanto secretamente, clamava por misericórdia.
No passeio estreito, esbarrava em toda a gente, mas ainda tinha tempo para ver aquelas lojinhas antigas, onde nos cruzámos pela primeira vez, onde desesperei perante a hipótese de um amor não correspondido. Era também aqui que costumávamos comprar botões, tecidos, chapéus para os fatos de carnaval, onde tiraste as tuas primeiras fotografias.
Da última vez que cá viemos, já tínhamos decidido sair de Lisboa, crescer noutro sítio. Improvisámos uma festa de despedida, a mesma que terminou com a entrada fulgurante do corpo de bombeiros no apartamento, acabando com o que ainda não tinha ardido e com a sobremesa que ainda não tínhamos comido.
Cada loja era um ano que estávamos juntos, que crescemos, quantas festas fazíamos, apenas para comemorar o facto de estarmos juntos, a divertirmo-nos, quando cada ano era o nosso ano, quando cada ano parecia ser todo o tempo, como se fôssemos apresentados todos os dias, a nós mesmos.
A chapelaria. Nela percebi que não podia gostar de mais ninguém senão tu. Que no meio da multidão escolhia-te sem pestanejar, que por mais que provasse todos os chapéus, apenas um me assentava, como se tivesse sido feito para mim. Mas para ti, não era isso. Alguém disse que existia tanta beleza no mundo que sentia que não conseguia aguentar. Eras tu. E isso, mal ou bem estava para sempre naquela fotografia. Nós estamos nela.
Subi a rua, subi as escadas do hotel, tentando esconder-me, guardar o medo que tinha, vergonha de que a minha fraqueza se espelhasse cá fora.
Entrei no quarto, fechei a janela para a rua, deixei de ouvir a multidão, escutei o meu coração ecoar nas paredes nuas, brancas e lisas, diluindo-se lentamente na escuridão. Deixei apenas o candeeiro aceso.
Abri a mala e espalhei tudo, rasguei, baralhei e voltei a dar, tentei desembrulhar o novelo em que estavam feitos os meus pensamentos.
Olhei as fotografias, os papéis, tudo o que acabou por ficar de nós. O que escrevi para ti e não te dei, por achar que não existia nada que se comparasse ao que eu sentia, as fotografias que tiraste, só a pessoas que não nós, e que roubei da tua gaveta, por ser a única coisa que guardavas com carinho, por as amares mais do que a mim. Tirei por saber que estaria a tirar parte de ti.
Doía-me amar-te tanto, e lembrar-me de tudo o que não eras tu, consumir-me em quase loucura, porque eras quase o mundo, todo, e tudo o mais que eu imaginava, flutuando sobre a nossa cidade, tentando voar de mãos dadas.
Mas esqueci-me de ti, e eu, lembrança efémera, que ardeu contigo, consumidos em fogo ardente, avassalador. Vazios de tudo e cheios de nada, definhamos por momentos, intermináveis, tentando saber quem éramos, se sozinhos, se tocando o rio com as nossas mãos, limpando os salpicos com beijos.
Dei-te uma parte de mim em troca de uma parte de nada.
Chorei. Tive saudades da inocência irremediavelmente perdida.
E descendo o rio, não eras tu ao dobrar da esquina, era eu, nascendo naquele momento, renascendo de cinzas, já esquecidas e agora voando, com o vento,
sobre a cidade, como nós.
Dança vencida

Entrei na sala de ensaios, pequena, mas muito luminosa e acolhedora, envolta numa pequena névoa de fumo. Á hora marcada as luzes apagaram-se, o burburinho foi diminuindo progressivamente até se instalar o silêncio absoluto e desconfortável pela espera. Uma luz vermelha acendeu, recortou o fumo e projectou-se no chão de madeira, por alguns minutos, como se de uma pequena chama se tratasse, acesa por si própria.
Um vulto mostrou-se, seguido de outro, e mais outro, alternadamente saindo da escuridão. Ondulavam como se acompanhassem o movimento da chama, como vários picos de luz numa fogueira. E tocavam-se, toques suaves e longos, como o fogo lambe a madeira, primeiro à superfície e depois, progressivamente até se confundirem com a matéria, ardendo. Como brasas que se soltam, separaram-se sem nunca se afastarem, fazendo parte do mesmo ser vivo, com identidade própria, em mutação permanente. Uma música suave, que não identifiquei, envolvia a sala, todos os presentes em fogo, que ora se mostrava, ora se escondia.
A pouco e pouco as formas revelavam-se. A pouco e pouco, as feridas abertas teimavam em não sarar, apesar do fogo que me consumia por dentro, que me devorava, como se de floresta virgem de sentimentos se tratasse. Várias mãos oscilavam, antes de tocarem nos rostos, no cabelo com uma determinação temerosa, como que admirando a pele, antes de a experimentarem. Vários corações batendo sincopadamente, ao mesmo ritmo, com a mesma excitação. A minha pele arrepiava-se com as outras. Sem vê-las, podia senti-las. Sem se tocarem, os corpos possuíam-se, apropriando-se a si próprios, queimando o chão.
O manto de fumo já envolvia sala. Libertavam-se silêncios, tocavam-se melodias. Chorava-se, ria-se, sentia-se. Trocavam-se olhares profanos, intenções carnais, mão seguras e decididas, movimentos distantes e quentes.
Todos se envolviam num tango, em corpos movidos pelo desejo, retidos na luta, no domínio, no carinho, no chão já gasto que quase nada reflectia. As cortinas eram a moldura da dança, vermelhas, de veludo, de dor e desejo, pecado carnal, capital.
Pararam corações aflitos, apagou-se coração deflagrado. Terminou a dança, acabou a luta. Não se deram por vencidos.
Fechei os olhos. Tentava desesperadamente controlar emoções que me esforçava por conter. Abri a porta e saí. Voei pelas escadas, tropeçando nas palavras que não saíam, turvando-me os olhos com água, sugando gotas de lucidez periclitante. Caí, no primeiro, no terceiro, em todos caíu qualquer coisa, das coisas que restaram, das coisas lindas que passaram, mas que acabaram por causa das coisas.
Chorei, sem respirar, sem pensar, apenas por doer, dor de nada, de vazio, de ferida a sangrar, de coração que se desfez. Doía tanto como se nada doesse, nada mais se perdesse, nada mais se quisesse. Calei gritos mudos, insuportavelmente repetidos na memória, sem tréguas, sem querer a paz.
Apenas me detive no fim do cais. Deixei-me cair. A chuva a molhar a cara, a ensopar a roupa, arrefecer a raiva, apagar o fogo.
Subi o corrimão, respirei o ar da noite, o rio. Céu escuro. Nem vislumbre de que vá mudar. Fechei os olhos e procurei sentir-me. Belisquei-me e nada. Nem arrepio nem dor, nem lágrima. Nada. Absolutamente nada.

Não resisti a mandar-te uma mensagem pelo telemóvel.
As regras

O inverno quase chegou. Os desejos arrefecem, mutam-se, esquecem as sombras e os bálsamos marítimos perdidos na contagem cíclica do tempo que se perde sem pensar. Na varanda do Lux. tu, de vermelho justo, braço estendido, alongando, percorrendo, afagando, o ferro e a pele descoberta, de tez escurecida pela luz, sem arrepio, como o caminho mais próximo que faço até ti. No interior, a cadeira escura, ao canto, na passagem para o exterior, encenado as gruas e as luzes do porto, observa bem quem passa por aqui, por ti. Brilhas mais, ofuscas, ris de quem se apaga e se perde. Ris, sem te rires como os outros, em leves movimentos, imperceptíveis, ronronando em algodão, tão leve, escondida e camuflada aos nossos olhos como aos dos outros, esta nossa vertiginosa corrida suicida, sede de adrenalina em estado puro, adocicadamente perigosa como cocaína. Este nosso entendimento que não entendemos.
O cigarro queima, cheiras a jasmim e a sexo, dos poros libertando-o, em doses de suor contadas em escala milimétrica. No teu pescoço.
Não há vergonha. Despudorada, insana, beijares aqui, com língua, percorrendo as tuas linhas, tremendo, de frio concerteza, que eu não me apaixono nem cedo a impulsos próprios da carne. Só ás vezes, muitas vezes, quase sempre, as vezes que te vejo assim. Tu.
Vozes e gente, barcos e carros correndo na margem, furando o torpor da quase luz e à vista, à primeira, é tudo igual. A noite engana e não é para nós, que não partilhamos egoísmos e excitações, as nossas. Não há mesas nem cadeiras, jarros nem quadros que possamos atirar ao canto, da parede ao chão, no meu tapete vermelho da sala onde te oiço gemer, sedenta de tudo, contorcendo-te na voragem das horas e dos limites que não temos e as regras que não cumprimos.
Não gosto tanto de ti e não gostas tanto de mim. Eu também não. Falas, ris, daquela forma imperceptível. Gozas da expressão e do adjectivo. O romance da prosa poética que é inventar o desejo, sem sentido e a fulminante e grosseira forma como nos agarramos ao instinto de copular por prazer, como nos defraudamos com Paris no cinema e escrevemos desprezando as regras de Al Berto e Saramago. Não são as nossas.
A varanda já é pequena e o táxi espera por nós. O chão da minha sala está livre, esperando por nós, por cinco minutos que seja, pedindo que não te apresses nem te acalmes. Afinal, a primeira regra é aceitar a incerteza e o fascínio.

A indomável satisfação de se ter o que não se tem.

sexta-feira, novembro 14, 2003

As vozes em ti

Procuram as vozes em surdina, na lentidão da luz,
em madeira rara, esquecidas e quentes, descarnada,
amaciando, arrepiando o veludo azul,
incandescente, de intensidade crepuscular,
inteiramente inventado na monção de verão,
percorrendo e envolvendo as mãos, nas tuas, longe,
querendo, temendo, ansiando, antecipando,
rasgando a madrugada e fios de prata caídos sem glória, sem brilho,
volteando, toureando demónios ao amanhecer,
perseguidos, eles e nós, sem nada em comum,
os mesmos medos, debaixo da almofada, quente e suada,
gritando mais alto que a fita, com gravilha na imagem,
invejando as letras e a escrita, a preto, em papel brilhante,
melhor que o teu, rascunho de peça, de dança rangendo no soalho,
de tinta escorrendo, alagando, mortificando-se,
temendo o afogamento em ti, imprevisível, inevitável, insaciável,
um insolente urro em plenos pulmões,
sou eu, mostrando-te o que sei, sobejando, explodindo,
a fascinação, a excitação digna de exibição, carnal, erótica, diferente,
cumplicidades de ser tão urbano, embriagado pela criação,
movimentos e contemplação, viver como aparições,
a busca silenciosa nas sombras do mar, onde o sol não tem lugar,
os fugazes desenhos, os amores tristes e enebriados,
a mentira do sonho que acaba, mesmo ali, na rua de baixo,
tão perto como o mal que nos vigia, que nos atormenta, rodeia,
estremecendo num marulhar distante do fim do mundo,
temendo o fim da polifonia, devoradora, insaciável,
o esquecimento, a cegueira, a mudez da voz que há em ti.

segunda-feira, novembro 10, 2003

Vadio

O vadio sentado na cabeceira do sofá
Fumando cheiros de olhares em corpos,
Que deseja ardentemente, sem razão,
Porque sim, como não,
Degustando o fim de festa que se inicia
Rindo do despropósito alcoólico,
Das caneladas sujas e arrogantes
De quem nada sabe e morre,
Todos os dias, a ilusão definha, enfim.
O vadio reclama, e ri, e bebe,
Diverte-lhe a luxúria de viver, tenaz
O luxo de amar quem entender, vulgar
De escrever, a excitação
O espalhar a tinta em cada corpo relatado.
Confidencia-me o horror da calmaria surda
O calor do amor às escondidas e fugidio
Regado de suor e gemidos,
Ecos de uma Tundra distante
Segregando fluídos venenosos à hipocrisia.
As beatas comem a alcatifa, vorazes
Precipitam o abismo escancarado,
O fim, a quem o fogo se apaga.
- Sabes, já ninguém sabe ser vadio...
Digo que sim, que sei...
Ingratidão dos últimos suspiros

Olhares ingénuos não queimam o reconfortante embalo da música
Dos algerozes inconsoláveis e da chuva rasgando todos os dias
Atormentados com a ingratidão dos últimos suspiros.
Andarilhos meio perdidos, ébrios
Transmutados em libidinosa errância
Filtrando pelo tempo o suave prazer de sentir a musica como sua
Sem se importar com isso e com nada, antecipando
Dizer que não à estranheza de alguém
Admirando o crepúsculo do juízo final por nós iniciado
Respirar o ar conturbado dos jardins quando não havia árvores
Onde a beleza é desculpa para esperar
Para ver o que acontece e lastimar as vozes, os gestos
Perdidos, distorcidos, recriados, transgénicos
Diligentes criações psicóticas em parceria
Exalando prenúncios de mentira e imitada realidade.
Pouco importa onde estou, mas tu sabes
Estranho-te e esqueço-te por aqui ter estado
Em consciência sabendo que não existes
Que ris e floresces de modos artificiais
Incolores e inodoros para mim.
A voragem da luz

Na voragem da luz,
Militam carcaças das trevas,
Frustradas, ofendidas,
Mortas tentando alcançar a escuridão.
A cura da opressão divina,
Prisioneira, como doença funesta,
Caminha solitária nos dias,
Penetra sem medos nas talhas,
Compromete a ciência sagrada dos homens,
O sentimento superior sacramentado.
A luz, que a tudo toca e não renega,
Desenha com perfeição as curvas,
Destapa, descobre e despe
Os veludos nas janelas e olhos
Da insolente petulância da questão.
Porquê?
Que cobarde forma de mentir
E fugir à ousadia da evolução,
São os subterfúgios das metáforas celestiais
E a punição vingativa e sádica
Como ameaça e pena à diferença.
A luz revela os caminhos.
A gula do conhecimento ou o direito de pensar,
Aceitar ou rejeitar os dogmas mundanos,
Os profanos e os simbólicos.