segunda-feira, junho 30, 2003

Anseio por tocar-te...Lisboa

Lisboa (prefácio)

Lisboa é o cheiro das castanhas assadas numa rua empedrada, o zunir de eléctricos nos cabos feitos teias, silhuetas de casas e ruínas adornadas com flores.
Tem a voz de muitos, gritada por uma mulher, chorada por quem quer.
Tem o branco das casas e de uma ponte, o vermelho dos telhados e de outra ponte, o brilho de um mar que afinal é rio, o azul de um rio que se faz mar.
É o parque do renascimento de sentimentos, a viela onde se choram momentos, o palco do teatro central, a tela do político, a tela do pintor.
A alegria da avenida, a devoção em algo maior, a devoção na luz, a sua. A sinuosa rua esburacada, a casa esventrada, a torre iluminada, o vidro feito padrão.
É o mercado da fruta, o mercado dos domingos, o mercado das ideias, a parede feita de azulejo, o túnel luminoso, o dia de sol, verão quente.
É a porta do sul, a chegada do norte, uma nação aconchegada num pote.
A campina por detrás do monte, a praia não muito distante, o moinho girando com as marés, o verde para lá do horizonte.
É colo de uma menina, lágrima doirada de palha, perdida no caminho do mar.
É o fim do oriente, é o fim do ocidente, é a vida de quem a sente.

Chiado (a descoberta)

Era dia, e sei.
Eram dias e passavam sem ficar para falar.
Era outro como outro qualquer.
Mas sei qual era.
Era dia, fim de dias, luz quente destoa a cor.
Por dias passei, em tantos não parei,
Naquele pensei, que era igual ao mesmo anterior.
Não era.
Lembro-me de ti.
Estranha figura, conhecida pessoa de dias passados,
Que passaram sem parar, não queriam saudade.
Passaste, mas ficaste.
E falaste, com palavras que não passaram,
Que saíram de ti, lentamente, sem pressa.
E brilhaste, os teus olhos, no fim do dia,
Que queria mudar para outro igual.
Depois vieram novos dias, que passavam, paravam,
Lembravam-se dos anteriores, planeavam os seguintes,
Mudavam o fim, começavam sem ser de novo.
É dia e sei, sei que estás aí.

Fado (o enamoramento)

O teu fado é o meu sal, caminho de terra que será água,
imenso azul feito horizonte.
Os teus medos são o meu sul, os teus lábios louco destino.
O branco do meu ser, o verde dos teus olhos.
Um barco de vento, um porto de saudade, um campo de searas.
Tu e Eu.

Ao mundo... (a dúvida)

Um modo estranho de escrever...que não é o meu.
Não tem palavras para dizer, apenas olhar,
para mim, por ti.
Só eu, que não vejo, o que queres saber,
estranho aos teus olhos, esta maneira de pensar,
de te apontar, incomodado, pelo que me é indiferente.
E tu és, por vezes, muitas vezes, quase sempre, inexistente, demasiado grande para te sentir,
Como meu e eu.
Nada mais és, do que aquilo que não posso ter.
Um modo estranho de dizer
Que não me conheces...

Amanhecer (o despertar)

Calma morta, volúvel,
Que se veste de amor, fantasma frio, de ventania,
Risca as águas de espuma, descendo com a maré,
Ao longe.....
Desafia a música da casa, observa o movimento,
E as gruas param, e andam e rangem,
Elevam-se no nevoeiro, num elogio dos silêncios,
Um medo dissipado, ténue, erótico comandar,
O girar do relógio, o bater do coração,
O sopro do amanhecer, na janela fechada, a cortina corrida,
E o sol.... tímido, modela a cidade,
Desvenda o mistério, vilmente escondida na noite,
Que acaba assim como começa.
Com o dia.

Canto (a desilusão)

A casa está vazia, irritantemente vazia de ti.
As janelas apenas deixam entrar o sol da manhã,
rasgar o quarto ao meio, iluminar o espelho,
violar o escuro do meu canto.
A roupa, os lençóis estão frios, enrolados,
empurrados para fundo da cama,
afastam de mim o teu cheiro, o teu toque.
Na parede ainda estão as marcas do suor das tuas mãos,
no espelho escreveste "amo-te estúpido",
num baton atrevidamente vermelho.
O meu canto está cheio, transborda de contradições,
medos, receios, de falta de ti.
Os quadros estão fora do sítio, o tapete impede que a porta feche, deixa a tua ausência vaguear livremente pelas divisões, respirar pelos poros desta casa.
A cidade ainda está a despertar, alonga-se, abre os braços ao rio, deixa o sol aquecer-lhe o corpo estendido na margem.
Abre-me as janelas com o som dos barcos no porto,
com o rumor do trânsito nas avenidas.
A casa está vazia de ti, irritantemente vazia,
e eu, espero... no meu canto, cheio de nada.

Ocaso (a mágoa)

Acordo agora pela primeira vez, e lento corre o mundo sem ti, uma alma contaminada e triste, sabendo que houve um tempo em que a vida, ardia em cada amor, deixando um vazio perfeito no passado.
Quis-te como um louco, porque tudo foi meu desde sempre,
sonhar com gigantes, que continuam submersos, como os deixaste, como se cada coisa se inflamasse no ar,
ardesse, fosse fumo e brasa, como tempestade nos seus dias breves.
E de súbito, a sombra morta do tempo junto de ti,
quando o destino já não é uma desculpa, apenas solidão e surpresa tranquila,
do amor que não existe e provoca-me, querendo dizer que existe o mundo, o muito que somos iguais ao mar.
Mas não consegui mudar a forma de uma nuvem,
e é muito provável que eu acabe por existir contigo,
quando o rio parar de correr, e a noite acenda uma labareda nos dedos, e esta casa sombria não pareça a nossa,
como do oceano é a bruma, o leve marulhar,
ou é da cidade a cor esquiva da tarde, como gesto final do ocaso, insinuando o seu final.

sexta-feira, junho 27, 2003

Assim como as lágrimas...

...Voas com a chuva pelos telhados


Rola transparente e fria, sem complexos ou vergonhas,
longe de egoísmos mundanos ou enigmas não resolvidos.
Cai, contorna as arestas, amacia a dureza do chão,
como a chuva molha o barro, como as mãos o fazem coisa.
A dor está por dentro, contra a chuva que bate furiosa.
Escorregas pela cobertura, lavas a angústia presa, que não sai.
A lágrima torrencial dos teus olhos, a chuva que não teima,
mas persiste, o telhado que espalha o teu sentir.
Bate com força no chão, salpica o teu corpo de esquecimento,
marcas que só o tempo pode apagar.
Por entre as pedras, a lágrima rebola nas escadas,
alarga a torrente de palavras, sacrifica-te o sossego,
sacraliza-te o amor.
Voa do céu à terra, do teu coração ao outro.
São os teus gritos que te estendem os braços,
são os teus olhos que tocam o vazio.
De ferro os teus medos enfrentam-se, lutam, queimam-te de dor.
Chove e permaneces só.
Lava-te o olhar, cobre a tua alma.
A luz apontada ao fundo da sala

A luz, no canto, escuro, frio, rebelde, silencioso, corta a respiração, mata a luz, que se perde, fugaz, limpa, virgem, atrevida, como uma chama na floresta, um barco furando a neblina, densa, misteriosa, envolvente, no rio largo, apertado pela cidade, alta irregular, barulhenta, confusa, com muita gente, que se cruza, numa praça, sem se ouvir, sem se calar, correndo, sem parar, para sítio nenhum, para uma rua, atravessando uma avenida, norte para sul, da colina ao rio, para a ponte, voar sobre a água, sentir os salpicos ao longe, sem poder para, cansado, com sede, a queimar, de desejo, o corpo ao sol, no veráo quente, interminável, bafejado pelo sul, o deserto, aqui tão perto, poucos segundos, uma hora, em duas te conheço, em três te pertenço, rebelde, silêncio, não consigo respirar, matar o desejo, sofreguidão, amor, paixão, sexo, suor, o calor, a janela aberta, não há aragem, as palavras não fluem, não escorregam na cara, enquanto choras, triste por não teres nascido, séculos atrás, não agora, para poderes veres mais, ouvires mais, sentires mais, mais, mais, mais, como se fosses água, intemporal, transparente, verdadeira, sensível, sincera, tocando as margens, os barcos, as gaivotas que planam e mergulham, a areia que se desfaz nos dedos, que voa com o vento, que se cola na pele, no corpo, nos nossos, eu e tu, no cais, vendo o pôr-do-sol,, cantando baixinho,, ao ouvido, murmurando palavras doces, de mel, e a cidade em volta, servindo de cenário, esperando as palmas, os encores, por não querer nunca acabar, como a luz, no canto escuro, onde se perde, sumindo-se lentamente, reflectindo-se, sem sentido, perdendo-se a música no silêncio, a respiração suspensa de surpresa, como a morte, fugaz e inesperada, sem aviso, como a luz que se apaga, com um toque, atrevido, no meu coração, sem volta, inconsciente, fica para sempre, aqui, comigo, olhando o rio, pela janela aberta ao mundo, onde as gaivotas mergulham, na nossa cama, para sempre.
Apaga a luz.
Primeiro reflexo

A voz é o primeiro reflexo de alma,
mas confunde,
quem se perde.
E tu, andas à procura de ti lá fora,
procurando no silêncio, um espelho,
e os olhos, o segundo reflexo,
de apenas o que queres ver,
num vidro embaciado,
nem da gota imóvel,
se vislumbra a transparência,
de quem não quer ser descoberto.
E ris.
E tremes.
E coras,
choras,
desculpas-te de nada ser o que parece,
pois não parece ser nada,
nada mais do que possas dizer,
nada mais do que possas esperar,
e cegas-te dizendo que vês
Sobre a nossa cidade

Doía-me amar-te tanto,
e lembrar-me de tudo o que não eras tu,
consumir-me em quase loucura,
porque eras quase o mundo, todo,
e tudo o mais que eu imaginava,
flutuando sobre a nossa cidade,
tentando voar de mãos dadas.
Mas esqueci-me de ti,
e eu, lembrança efémera,
que ardeu contigo,
consumidos em fogo ardente, avassalador.
Vazios de tudo e cheios de nada,
definhamos por momentos, intermináveis,
tentando saber quem éramos, se sozinhos,
se tocando o rio com as nossas mãos,
limpando os salpicos com beijos.
E descendo o rio, não eras tu ao dobrar da esquina,
era eu, nascendo naquele momento,
renascendo de cinzas, já esquecidas
e agora voando, com o vento,
sobre a cidade, como nós.