sexta-feira, fevereiro 27, 2009


Bairro (alto)


Renovam-se, multiplicam-se, incessantes, irresistíveis,
Os planos para a noite, para arrumar o mundo,
Os loucos e perfeitos movimentos, moribundos,
As artimanhas e conjecturas, sortilégios,
As fugas, amores e beijos roubados, tesão,
As lutas, desejo e inquietude, a devassa, tu,
Os prazeres escondidos, proibidos, adorados em surdina,
As paredes que transpiram,
As companhias, estranhos equívocos, revelações,
Palcos improvisados,
As torrentes de vozes, subindo, morrendo, ressurgindo,
As portas abertas, peitos escancarados, ao alto,
As luzes pardas,
As noites e dias seguidos em rotineiro e excitado sobressalto,

O Bairro,
A cidade que se interrompe, por meros instantes, quando amanhece.
Até já.

quarta-feira, fevereiro 18, 2009


Cais das mil colunas (infinito)

O silêncio apodrece na areia suja,
Perde-se nos poemas e artifícios do tempo
Ateado nas ondas despedaças no cais,
Feridas nos sublimes avanços das marés.

Singram as palavras no rio,
Aportam os dedos na tua boca,
Os beijos ancorados no cais,
Apontando ao céu
E ao mar adiante, infinito,
Entrando na cidade, vestida de travessias
E luz de fim de dia.

sexta-feira, fevereiro 13, 2009


Lisboa para amantes


Ninguém soube dizer-me
Quem foste tu.

Não se podem fingir as partidas,
Esconder feridas com golpes
Ter amigos e amantes e pecados inconfessáveis,
Promessas sobre tudo o mais que não se pode dar,
Esquecer tudo o que se fez e se faz e insiste,
Trilhar os mesmos bairros que descobrimos por nós
Em ruas traçadas a descuido,
Sozinhos, a sós com desejos nocturnos intermitentes
E não perguntar: quem és tu?

A paixão chama-se sangrando no coração,
Gritar verbos que ardem no sofá aberto à rua,
Incessante,
Transbordar as margens, com o rio, as inconstâncias da razão,
Correr o sonho, sôfrego
Nos instantes que nos atordoam.

Fomos docas mansas, portos de abrigo cheios de adeus,
Brilhámos longe,
Acesos pela lua que nos vigiava,
Procurando saber quem queríamos ser, nós.

Somos sombras e beijos ditados pela cidade,
O veludo da nudez,
Das praças vazias amanhecendo com a luz.



“Encheram profunda taça e envolveram-se em fervor. Ficou-lhes na boca — presa ao crescente desejo de mais beberem, de mais conhecerem — o sabor da outra Vida maior, onde os levara o ensejo de ultrapassarem a carne. (…)”António Salvado, in "Difícil Passagem"