sexta-feira, novembro 19, 2004


Abandono

“Não há neste céu enegrecido
a quem entrego a alma perdida
vestígios do teu olhar
sereno farol gotejando de luz”


Sérgio Freitas in Inquitude

Seduz-me a saudade insana
de à primeira vista
morrer por uma canção,
intensamente, rapidamente.

Ela mesma,
num abandono sensual
de falsa leveza e candura,
como um fado qualquer,
chorando a arte do desencanto
numa carta tardia.

Dois momentos coincidem na mesma noite
sozinhos como eu, deslizando a colina
ao fundo do aborrecimento
em grande estardalhaço,
sem disponibilidade para surpresa e o desvio...
Como dantes,
fingindo amar, cantando às cegas sem escutar,
e sem pressas de ver que há mais barcos que já não chegam a Lisboa.

Tudo se resume a pouco...
À câmara muito lenta do teu adeus,
Espreitando o mundo que começava
Entre duas silhuetas na madrugada,
A dois golpes certeiros dos dias seguintes...

Em puro afastamento....

Ouve a cidade



I
Escutar o som, o murmúrio do silêncio da água, o rio acariciando a pele de pedra branca, em vela, ao vento. Os gritos de calma na multidão, sobre as árvores, de ferro e vidro, que reluzem, adornadas em reflexos opacos como silhuetas de cidadelas iluminando a água, tremendo, cantando, aceitando o fado, o inverno esperando o verão. Descer a calçada com a manhã, escondendo o cansaço e a luxúria, proibida, pecado originalmente inventado entre o caos do rumor e movimento nas avenidas, correndo para abraçar as risos ao alto, crescendo como fogo de artifício, zunindo em carris de ferro feitos teias

II
Cheira a mar. Respiras suavemente, ondulando a pele ao mínimo toque. Atiro uma pedra e os meus dedos tocam-te três vezes no corpo, até caírem na tua boca, depois de outra onda. Salpicos de poesia murmurados ao ouvido, indo e vindo, enchendo a maré, transbordando amor ou outra coisa tão boa como esta, de estar aqui, contigo. Sinto o cheiro do cais subir a rua, do horizonte até aqui, onde está o teu perfume, o aroma dos teus olhos. Uma investida sobre ti e as gaivotas voam rasando a água, ameaçando pousar, insinuando, finjo beijar-te desinteressadamente.
Do mar aqui, de ti a mim, uma avenida marginal, tapada por casas, por roupa que queremos arrancar, que impede o vento de circular, a nós de respirar. O sol aquece-te, junto a mim, enrolados numa manta, na névoa que se levanta, no ecoar dos passos, das batidas do coração incontidas e descontroladas, lançando sangue na rua como alma nas veias..
Assim como um estranho, vindo do outro lado da rua, cheguei à tua margem convidando-me a entrar, sem saber o teu nome. A tua casa, branca, cheira a mar, a tua alma ocre, pele ousada, colou-me aos olhos tristes por nada. Enrolados na cama, nos ferros da tua varanda, esperando que me perdesse, deixei-me dominar. Entreguei-me para que fosses minha. Nem com a manhã deixaria de ser teu.

Aguaceiros



O empedrado gasto da rua reflecte os primeiros aguaceiros deste Inverno,
fechamos os olhos e corremos a rua sem ver os semáforos, como se por um acaso, a chuva já não nos tocasse.
O correr lento da avenida muito pouco marginal, onde o rio já não se vê entre o amontoado de contentores, de dormência inultrapassável, adia mais um dia que não pode ser adiado.
E tu, como o mar que não vejo há meses, um verão que para mim há muito passou, desenhas a tua ausência na condensação do vidro, refazendo a imagem do mundo longínquo que ainda há pouco tive na mão.
Um longo Inverno de Agosto, implacavelmente segurando-me por dentro, conduzindo-me ao que insisto não aceitar e ao que tu insistes em procurar.
A inevitabilidade de todos os dias cortar a crueza das ondas, tentando adiar um dia que não pode ser adiado e pisar esta cidade que apenas vejo de longe, à distância de uma janela aberta sobre um dia de sol.
Vem comigo, vamos sair agora, aqui, para lugar nenhum, finalmente entrar na cidade dos dias que têm de acontecer todos os dias e traçar a nossa rota de pretensa rebeldia, entre as pedras soltas do passeio e os destroços da beira-rio.
*
A maré baixa da doca deserta escondia o rumor da avenida atrás dos armazéns e o dia sempre adiado abriu-se com os primeiros raios de sol de que me lembrava.

Gato e rato


Em cubos, o açúcar desfaz-se como água ráz violeta no céu e ao fundo do corredor, vermelho - sem intenções óbvias – a divina cumplicidade de Deus e o Diabo num corpo só, rindo e corando, sem nesgas de penas ou provações, rebola-se numa aparente simplicidade e inocência da minha cama.
Do sofá de veludo azul apenas vejo uma nesga de pecado, aquela que me concedeste, afastando censuras por patente gozo depravado e voyer, que não me permitirias ter.
Por mim gatinharia pelo chão de madeira envernizada, duplicando no reflexo o meu divertimento, partindo para conquistar, novamente, esses domínios que insistes reclamar como inexplorados.
Dizes, sem levantar a voz, que não devo sair de onde estou. Aceno que sim, concordando, apesar de não me veres e continuo a beber o meu café, adivinhando o que não irás fazer.
A luz já não entra na janela, o relógio marca a mesma hora há cinco horas, numa em que arrancaste a ficha da parede, em cada dia desta semana, ultrapassando os limites do cansaço e da agonia do excesso do prazer, como casas de veludo e talha dourada, em cada ínfimo ponto que pudesse ser preenchido.
A chávena de café já transbordava, como eu, preenchido de antecipação, estupidamente, ou inteligentemente, como um jogo. Sabia perfeitamente onde tudo iria acabar, e lembrando como era, fazia por esquecer, extasiado por surpresas melhoradas, sempre que as mesmas aconteciam.
A musica apareceu, sem que desse por isso, mas encostou-se a mim como um gato, ronronando. “Quiereme” da Núria Fergó não era bem o que eu queria, mas nada como salero de fim de tarde num quinto andar da Sétima Colina.
“Quiereme, como se quiere por primeira vez, quiéreme, quiéreme para lo resto de la vida.......” e por aí adiante, percorrendo o corredor, sem parar, pisando tudo o que atiraste pelos curtos intervalos em que abrias a porta, rindo, sorrindo, provocando, com saídas esporádicas e rápidas, como um jogo de gato e rato que sempre gostei de jogar contigo, desprevenido, à mercê da tua militante loucura, nada virginal, sem tremores de primeira vez, onde eu podia ser rato e gato, conforme o momento e a disposição. Mas gostavas de ser gato de vestido curto, fosse em Paris, Praga ou Atenas, nunca em Nápoles, Nice ou Barcelona. O teu estranho e excitante fetiche da proximidade ao poder não nos deixava dormir numa cidade que não fosse capital, num quarto com janela com vista para o poder.
Fechada no quarto, matando-me de antecipação, sabias que esperaria o tempo eu fosse preciso, sabias que não eram perdidas as horas de preliminares, em que, invariavelmente, chegarias sem que eu ouvisse, tirando-me o cigarro da boca, fechando a janela sobre o Palácio de S. Bento, já iluminado.

Perfurando a tua ausência


A casa há muito que está fechada. Os passos há muito deixaram de se ouvir e gastar o soalho do alpendre, vestido de folhas secas e ramos abandonados do velho castanheiro que teima em crescer no jardim.
Encostado ao carro, espero uns momentos para admirar a ausência de vida no penhasco, para ganhar coragem e atravessar o o caminho de ciprestes até à clareira defronte da porta, que sei que não tentar sequer abrir.
Pedi-te para ficar e esperar fora dos domínios do que queria esquecer. Compreendeste, como sempre. E aceitaste.
O barulho da porta do carro assusta os pássaros nas árvores e ecoa pelas falésias até ao meu peito, batendo ao ritmo dos sapatos esmagando tufos de erva seca, da chave rodando na ferrugem do portão, denunciando que há muito teria sido deixado aberto.
O barulho do mar tornava-se perceptível e presente, ao fundo do pinhal frio atravessando a fina camisola de malha que trazia, não sei bem porquê e agora não me lembro, porque me esqueci que saberia que assim seria.
Desde há umas semanas que não conseguia dormir e a tua presença era demasiado constante para que pudesse levar uma vida normal, sem suores frios, sem ataques de ansiedade, sem pressa para saborear o meu café ao fim da tarde lá na avenida. Pensava que tudo tinha sido enterrado aqui, que aqui tudo tinha sido discutido e resolvido, que fechando a porta da nossa casa, deixava as minhas inseguranças seguramente presas longe do meu precário equilíbrio, continuamente devassado.
Passei ao largo alpendre, dos canteiros de rosas dominados por ervas e mato e procurei as escadas da falésia no meio das silvas, tentando lembrar-me do sítio onde nos vimos pela última vez, algumas semanas, meses atrás, já não sei.
Descobri a velha passadeira de madeira que nos levava ao miradouro e à casa de inverno, onde observávamos e admirávamos o forte mar de inverno, comendo a areia, deformando a praia. È o lugar que melhor me recordo de estar contigo, os dois a sós, a última, onde me pediste em casamento, eliminado de vez a minha vontade de amar em liberdade.
O cheiro a abandono era intenso e insuportável, mas garantia-me que ainda poderias lá estar, que permaneceste presa ao que era nosso, libertando-me para construir o que era meu, talvez obrigando-me a fugir para outra prisão, não sei. Queria apenas assegurar que a tua presença não me teria seguido para onde fui.
A porta estava aberta, mas ao fundo da sala, junto à lareira, estavas lá. Ainda estavas lá. Apesar de tudo sempre altiva e arrogante, mas continuavas como quando te deixei. Sofrendo, clamando perdão, aceitando os fracassos e a inglória luta para me destruir. Nada que que não se resolvesse perfurando o teu orgulho até à ausência de coração, o que, curiosamente, também sangra, dói e mata.
E matou na perfeição, sem falhar, como uma ciência exacta, embora de variáveis incertas e muito indeterminadas, quase improváveis, como o facto de continuares imóvel, na mesma posição, mãos sobre o peito, de camisa tingida, entre a lareira e o sofá, rodeada de bichos e decomposta sem tréguas. Provocaria enjoos, não fosse a satisfação de ver que o meu passado estava morto e decomposto, como que por magia.
A gasolina ainda estava ao teu lado, mas na altura não julguei mereceres a purificação da chama nem pretendia alertar os espíritos à solta na praia nesse Verão.
Receando ter de te ver aqui, ou todos os dias quando acordava ou dormia, lancei-te o fogo, não para te purificar mas para te castigar, para queimar qualquer possibilidade de dignidade que pudesse ainda residir em ti. Assim mesmo, sem perdão, tão facilmente como ignorar o que não sabemos.
Muito devagar, mãos nos bolsos, subi as escadas, atravessei o jardim sem olhar para a casa, fitando o carro ao fundo da alameda descuidada e vazia.
Ainda esperavas por mim, embora ja cá fora, fumando compulsivamente. Se bem te conhecia, não era o primeiro cigarro.
Beijei-te sofregamente, inesperadamente, mas gostaste. Sem medos, sem estigmas, apenas amando, abri-te a camisa, as calças, exibi-te a minha excitação, a minha vontade e encostei-te ao carro, amando-te, rindo, libertando gritos em liberdade, por longos momentos sem tempo.
Abriste-te os olhos e a tua boca desenhou as palavras que me voltariam a matar, a morrer por dentro, a desejar nunca ter amado.
- Queres casar comigo? Disseste chorando de alegria.
Foram as últimas palavras que ouvi da tua boca, antes de te ver desaparecer e soçobrar diante mim, horrorizada com o mal que me infligiste, com a tua crueldade fria e com a faca que perfurei a tua ausência de coração.

sexta-feira, agosto 06, 2004


O fogo onde todo o vento sopra





Mal ouvia o ruído da fogueira
Crescendo na meia noite do areal
Consumindo memórias do inverno em Agosto
Em sons esparsos e sem barreiras

Tu na praia
Em todas as cores
Como um relicário admirável
De desalinhada sabedoria e devoção
Fingindo minúcias
Sem vincos nem loucura
De movimentos contidos, odores intrínsecos e carnais

O meu fetiche do fogo querendo fugir
A curiosidade infantil de querer queimar-se
E rir-me da paixão
Inflamada e descontrolada
Como um incêndio de verão sem remédio
Onde todo o vento sopra.

quarta-feira, agosto 04, 2004


Tocando-me nos lábios

“A vida em certos dias não tinha a forma daquele objecto antigo
Tocando-me nos lábios com calor excessivo”
Gastão Cruz in Repercussão


Vamos fazê-lo...

Um desafio nocturno inconformado,
Qual insurreição anárquica e indomável
Soprada em palavras incoerentes, não depuradas
Suando cada riso,
Cada cabelo desgrenhado,
Blasfemando as cicatrizes assombradas
Afastando inquietação e ruído
Numa imparável calma singular
Deixar pairar o tempo como uma tragédia suspirada,
Deixar acirrar a nossa veia incendiária

E depois, rir...

Isso seria estranho,
Ser feliz em quase choro,
Adorar as nossas coisas,
Depreciá-las e ansiá-las, como antes
As coisas indeléveis capazes de mudar o mundo.

O amor mora ao lado,
De cristal imutável, valioso
Sempre esperando ser empurrado
Desajustado na razão,
Inflamado na emoção.


Sem palavras

“E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira,
Traça um semicírculo de não sei que emoção”
Álvaro de Campos

Ainda sangra e espanta
A vida tornou-se só e mais simples
Como a casa, sem quadros
As cicatrizes que eu mesmo abri
Esquecendo-me que te esqueci
No momento que passámos a ecos
E as palavras também
Que nunca mais se ouviram
Deixaram de voar com as gaivotas até ao rio
Ao fundo
Perdidas na monotonia do giro lento dos guindastes.

O Canto da água (eterno)

(a Carlos Paredes)


O abandono é difícil
como um convite ao amor e à poesia
numa súbita tarde de verão.

Sobre o fundo dançam as palavras
de pessoas que não se encontram mais
num desejo de que nada acabe nunca
experimentando memórias e a perversidade dos limites.

Uma espécie de queixume que se calou
num jardim perto de casa
num cantar lancinante de palavras difíceis
indecifrável e difícil
como a pureza da tempestade.

A aparente leveza de viver
desde sempre empoleirado na eternidade
vivendo na claridade da água
e da música que ela faz

quarta-feira, julho 07, 2004


A calma de antes

Solto frágil e insano.
Sobre as cinzas do silêncio e do embraraço.
A cobiça de vários pecados
De mitos e ideias escritos à mão.

Encontro sobre a chuva torrencial
Os últimos degraus de sombra entediante
De luz escoando-se no cansaço:
De te ver e te querer
De te querer e não te ter
De mais desejar...além de ti.

Antes da porta que se fecha com força,
Tocando seguro o ímpeto de amar no último dia do mundo
Bocejo...

A calma de antes...

Cantado em italiano

Passou a rápida busca de caminhos,
Os dias e as deambulações são outros:
Refúgio e abandono
Sem luminosas errâncias
Tentando voar com uma só asa
Sobre um jardim de urtigas
Sem a grandeza do mar aberto...

Último dia do mediterrâneo

Só à primeira vista estranha,
A lucidez demente de um elogio funebre,
Ecoando na nudez do espaço vazio
Do meu corpo desamparado,
Onde tudo o resto é silêncio

A dor arpoada no peito,
Um Dó menor do mundo que acaba,
Esperando um pôr do sol eterno que incendeie por dentro.

É um acto de fé aceitar a morte,
Como que uma redenção preversa à crueldade:
De desaparecer num dia como este, sem brilho, sem luz,
Sem nada para fazer, admirando a tristeza do verão,
As águas estivais descendo pela janela,
Acordando o inverno.

Adormecer,
Sem a ansiedade de ser poeta.

Sem pressas

“O momento perfeito para Deus é aquele em que cada pessoa compreende que não precisa de Deus”
Donald Walsch


O beco não tem saída
mas a mão solta inabalável o incenso
em redor da memória
como notas de música tibuteantes
a alquimia em slow motion de eucalipto
misturando-se no ar das colinas suspensas
em paz.
O silêncio do instinto para amar
como o inquietante redizer de uma palavra
estranhando e entranhando a intimidade
suspensa com a respiração
junto ao mar.

O mar que se adivinha

“(..)és o corpo a que voltar
será talvez como morrer no mar”
Gastão Cruz, “Repercussão”


Fogem as sombras e os risos no estio interminável do sul
O suor e as curvas que luz desenha
Em finas e intermitentes linhas de horizonte
O mar que se adivinha na aridez de palavras
No reflexo dos lábios humedecidos outra vez
O testemunho silencioso de um tronco solitário
Marcando a diferença da ausência dela
De súbito avistada como um beijo roubado
E gralhas rasando as rochas e as searas
Olhos desamparados no rompante de botões saltando
Pele sobre pele
As marcas da terra no corpo que descansa atordoado
O vento que toca como água
Lavando o embaraço dos calores
Escorrendo e logo secando
Na estepe alentejana.

A noite que foge encontra abrigo em ti

A noite que foge em silêncio encontra abrigo em ti
Aninhada nas ténues esperanças de regressar
Ao mundo das vozes e mentiras que teimo em não ignorar
Neste dia que nunca acabou
Mesmo quando tudo havia terminado ao arrepio do acordado
O sabor da laranja amarga que trazes nos lábios
Recorda a acidez que havíamos esquecido
De cada vez que falávamos
De nós
No calor das intermináveis noites de Verão
Que já não era o mesmo
Porque mais intenso
Sem risos de água corrente
Esquecida a limpidez dos sentimentos
A sinceridade das palavras fulgurantes inventadas
Preenchendo silêncios e venenos sem antídoto
Nesta separação que inventámos e desejámos
Apagando os dias transformados em noites
Adivinhando as tuas horas e as minhas
Debruçados na varanda dos dois lados da rua
Olhando um para o outro.

sexta-feira, abril 16, 2004


Puro como a mortalidade



Um pouco por todo o lado
Um catálogo suculento de ácidos e lúcidos
De mau sexo e boa bebida
Onde os sóbrios ocultam a perplexibilidade
Dos risos embebidos em pequenos instantes
Cheirando rastos de estima
Crescendo da escuridão para luz
A memória dos dias e o pavor da noite
Ouvindo vozes murmuradas de amores em luz difusa
Rugindo puras como a mortalidade...


“(...)Há em cada instante uma noite sacrificada ao pavor e à alegria(...)”
in Lugar de Herberto Hélder

O eco dos teus passos



A caligrafia estampada em folhas encarquilhadas,
Riscando o mar como cal desfeita na parede esboroada,
Abrindo cicatrizes, salivando,
É poesia que não se contende numa prosa de dias.

Num riso cortado, sem pressa nem lâmina,
Perdendo sangue que alastra e escorre
no esplendor dormente do meio dia de Marraquexe
Que permanece e sucumbe ao fogo da tarde
Escondendo, comendo a tinta do papel.

A sangria tempestuosa e ribombante dos teus passos,
Num furor desonesto e erótico,
Correndo sem escutar o eco da medina,
Deixando-me ao escuro sono da solidão,
Decepando sem misericórdia as cores que nos cobriam,

Mais uma vez ofuscado pela imensa luz transbordante do deserto...

Ao fundo da rua, desde sempre,
como uma promessa

Gotas suspensas sobre a água


O fulcro da harmonia está em cada miligrama de música,
Num ruído telefónico desde Buenos Aires
Ou na inércia aflitiva de uma gota suspensa
Movendo-se como o Inverno,
Errática, cristalina e suja.

Estranho é o mundo da solidão habitada,
Completo de fantasmas escondidos,
Esperando cumprir tarefas
Em tempo lento, esboroando-se rarefeito,
Perto da alucinação.

Esperava algo mais explícito,
Existir para sempre sem mostrar o que está escondido
Como um pesadelo de loucos
Numa enervada disputa pelo nome das coisas
Coleccionando rasuras, resíduos e ruídos de melodias lunares.

E o tempo demorava a revelar-se para nós,
Que nos olhávamos haviam não sei quantas horas,
Lutando e vacilando pela primeira desistência e derrota,
Pelo saque dos sentimentos que teimávamos em defender deste cerco.

Chovia copiosamente e era Verão em Buenos Aires.
Outros tempos os nossos.

terça-feira, abril 06, 2004

OUTROS AUTORES

Música numas escadas
por Pedro Rapoula



Sento-me numa qualquer rua do Chiado.
À volta
as pessoas passam indiferentes à minha presença
à minha solidão.
Sentei-me porque um músico toca guitarra
sem perceber
que me atinge fundo,
muito fundo.
A música penetra-me
e eu fico sem saber exactamente onde estou,
se em Lisboa,
se numa qualquer rua
de uma qualquer cidade…

Agora parou.

Fuma um charro
com dois miúdos que também já o escutam
há algum tempo.
O silêncio de volta à rua devolve-me alguma lucidez.
Volto a perceber que estou em Lisboa,
que estou sozinho,
que tu partiste
e que a vida se reorganizará na tua ausência.
Conversam agora animadamente
enquanto partilham o tal charro.
Tenho vontade de me juntar a eles,
a fumar algo que me faça esquecer a minha dor.
O vinho que bebi ao almoço começa a perder o seu efeito
e eu não quero estar sóbrio.
Há demasiado sol e
é demasiado cedo
para ficar consciente.
É na minha consciência que me torturas.
É na minha consciência que a tua falta dói mais,
a segurares-me,
a compores-me,
a insistires para que fosse sério ,
adulto,
bem comportado.

Recomeçaram a tocar.

Quero voar nesta música.
Quero sentir que não estou de facto aqui,
que posso estar em qualquer lugar.
Quero fugir de ti,
de mim,
de tudo o que me prende ao nosso mundo.
Quero estar só,
ficar só,
dormir só,
mas morro de medo da minha solidão.
Morro de medo da tua saudade…
Quero viver sem ti
e não sei.
Quero respirar fundo
e serenar
por te saber ausente,
como se esta tua ausência não me fosse destruindo por dentro.

A música continua a percorrer-me.

Sinto-me assustado.
São ritmos quentes,
que me atiram à cara as recordações de ti,
que me transportam aos teus pés.
Ouço o rio a correr,
lá longe,
e de súbito,
os minutos passam por mim
com indiferença,
como se o meu sofrimento pouco importasse.

Estou cansado.
Quero viver sem ti e não posso.
Quero possuir-te e odeio-te.
Quero tocar-te e não suporto ver-te.




e o mundo acabou
por Pedro Peralta



E o mundo acabou. Sobram as páginas pisadas, as páginas escritas, as páginas deixadas, as páginas em branco. E o mundo acabou, e sobrou um pouco dessa poesia moribunda na praia do teu olhar, ficaram essas palavras errantes que soletras e vives sem pensar, sem sentir.

Quando o fim acontece o começar rejuvenesce. As cinzas, as cinzas e o caos, as sílabas perdidas, os amores deixados, a saudade que virá nos amores deixados.
Ao começar, em cada novo começar, o fim não existe. Começar é ser criança, é ter a infância em cada gesto, na brandura de cada movimento, é ter tudo de tudo, é despertar, despertar e sentir como bom é com o paladar adornar a aurora, é tomar a brisa fresca pela mão e dançar até o sol nunca se pôr, é saber que o fim não existe. O fim não existe, sussurrei eu de mim para mim ao saber-me não criança. E fim não existe, o começar é que rejuvenesce... Ah... O começar é que apetece!

Estas linhas,
O rio que nelas corre, o rio que delas corre e desagua num rio que é a paisagem dele mesmo, um rio que corre e é maior que o mar que o faz, que o mundo que o é.
As palavras e os barquinhos, as palavras como barquinhos a flutuarem no pensamento e a naufragarem na Poesia, nos poemas onde nasce o nascer, as afundarem-se eternamente nas páginas destas linhas.

Que o fim não traga as lágrimas por o ser, que reste uma melodia de sempre nesse teu sorriso de Outono e primavera, e primavera.
As pétalas das flores dos campos que se perdem no longe do horizonte infinito a voarem e a florirem novos campos e novas flores, e flores, e flores; As palavras que teço a marcarem o compasso de uma canção que compus para te olhar pela ultima vez e gritar-te até amanhã, para te olhar PELA ULTÍMA VEZ E GITAR-TE ATÉ AMANHÃ.

Este sorriso que me invade
E inunda os olhos: que ele me possua para sempre, para eternamente sempre.
Adormece nas linhas que te ofereço mar/caderno/paixão. Vive, Voa,
Até amanhã, ATÉ MANHÃ!
As tuas asas: o infinito, o infinito, O INFINITO: és eterno.


Filho
por Pedro Guilherme-Moreira




A mão dele ainda cabe aberta
Na minha mão fechada.
No dia em que não couber,
vou em busca do abraço
que encerre em mim uma volta.
O olhos dele ainda brilham
nas frestas do olhar do pai.
No dia em que não brilharem,
buscarei em mim o véu
que lhe devolva o horizonte.
E os seus ouvidos vibram,
desaguando os meus passos.
No dia em que não vibrarem,
vou em busca do silêncio
que me deixe ouvir os seus.
Enfim, um dia, o meu filho,
não vai querer um beijo meu
à porta da sua escola.
Nesse dia, a ternura
que docemente traduz
a violência pura
do amor,
vai sentar-se na mão,
a mesma mão
que em si lhe fechava a sua,
e descansar
sobre o seu ombro,
calada.
Se ao menos nesse dia ele deixasse
fechar sobre si o abraço...



sexta-feira, março 26, 2004


A noite ardendo

Hoje já não posso ser assim.
Demasiado avesso à melancolia,
Nunca dizer nunca,
Sentir o que de nós se espera.

Outras memórias vêm à tona,
Perdidas em movimentos redundantes
Resplandecendo na obscuridade intensa:

O jazz polido da tua voz,
Uma comédia de algo que se intromete e arrebata
A noite ardendo só, deflagrando risos
Celebrando euforia.

Magnífica respiração ofegante,
A invejável simplicidade da respiração
Cruzar sopros inconciliáveis.

As diferenças dissimuladas.

A insistente atenção a nada mais que a estrada.

Hoje, pela noite, passam apenas uivos de revolta,
Poesia abandonada
Vadiando como música excelsa na expressão dorida da escrita,
Decantando a depressão como redenção perversa,
A tinta feita ácido ecoando como badaladas.

Não sei se posso ser assim
Mesmo amanhã quando acordar exactamente igual.


“ Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão”
in Um Adeus Português
Alexandre O’Neill”

última gota




amanhece
a cidade dorme e desperta
aos poucos, primeiros, os silêncios e suspiros da manhã
nas margens do inverno desfeito suavemente
passos ecoam e desgastam as esquinas onde curvam os dias sempre iguais,
as pessoas, as nossas, das mesmas ruas e minaretes enclausurados

(pausa)

lágrimas
gotas confundem-se em pólen libertado no vento
repousando em tapetes e relva escura, alcatrão
sepultando a última terra
a que não respira
que envolve em dura prisão eterna
libertadora

- onde estou?

(ao fundo)

- chorando a última gota de paz...



(Escrito em Madrid, no dia 11 de Março de 2004. Para quem insiste em viver)

sexta-feira, março 12, 2004


Quando ninguém olhava

Passava os dias iluminado por uma janela
Esperando os dias seguintes
Escoando memórias inquietas
Esvaziando contornos de feridas
Abertas, sem horas nem promessas
No sossego
Quando ninguém estava a olhar.

Custava viver emparedado no teu silêncio
Devassado de ambições e chama
De olhos abertos, adormecidos sem lágrimas
Com as mãos mordidas, em sangue
Presas violentamente na parede.

Percorrer a vida no meu rasto
Pisando as minhas pegadas
Respirando os mesmos minutos
Sem trabalhos de monta
Que tudo o mais daria muito trabalho
Como falar
Como sonhar
Como inventar
Como vivermos com pressa de viver.

Quando ninguém olhava
Deixei de te ver
Respirei o meus minutos sozinho
Iluminado por uma janela
Á beira do mundo, começando outra vez.
Acorda-me

Um corpo caótico que se devora a si próprio
Numa descida arrojada e temente às profundezas
Abismos impossíveis sem tempo.
Odeias-te.

Nos lugares ermos ou desocupados
Até nas piores avenidas
Em deambulações estridentes
A tua encenação intermitente
Uma farsa ácida de volatibilidade inebriante
Agitando águas dos quotidianos sombrios.
Odeio-te.

Dois corpos à deriva
Expatriados do mundo
Sugando-se
Nas peculiaridades da essência
Num despertar incandescente
Todos os dias destes dias
Rindo e praguejando
Cinismos musicais soando de forma bizarra.
Amo-te, não sei porquê.

Acorda-me, não te esqueças!
Não me esqueças.

“Há sempre uma noite terrível para quem se despede do esquecimento”
Herberto Helder, in Poesia Toda – 1996


sexta-feira, fevereiro 27, 2004

Lixo


Se a noite enganou
A manhã veio desvanecer de qualquer dúvida.
Em tinta escura, sujando os dedos
Ou ao sabor de uma estranha melancolia
Uma banda sonora dissonante de sussurros e zumbidos
Mostrando um espólio de luminárias
Capaz de incomodar.
E num instante que é breve,
Num franzir de sobrolho,
Uma narração insólita de sombras,
De tudo aquilo que vem à cabeça...
Queima como gelo um desprezo tão determinado.
Ironia da ironia,
Inteligência de quem mexe ao sabor da inquietação,
Tudo é apenas uma coisa:
Doce morfina derramada que nos sacia
Em pequenos espasmos
Cuidadosamente administrados,
Como intrigantes viagens sem amplitude no tempo.

*

"Há dias em que julgamos que todo o lixo do mundo nos cai em cima”
Eugénio de Andrade, in Lugares do Lume


quarta-feira, fevereiro 25, 2004

Exuberâncias dos infernos ao crepúsculo



Um sorriso amargo, esboçado sem convicção,
Perante a infinita tristeza das fotografias de pontes sensíveis,
Testemunhos cegos de um universo tortuoso,
Abordagens retorcidas e estilhaços
Cravados, sem aviso, nos meus pesadelos.

Um sorriso amargo, escondido,
Perante os desejos sublimados,
Os devaneios febris da vida sem sentido,
Perdidas em desertos nocturnos de aridez profunda,
Em páginas de cinzento escuro nas mãos.

Um sorriso amargo, fingido,
Esvaindo-se em cansaço e abandono,
Cedendo à morbidez fluida e aberta de respirar o mundo dos suicídios,
Perder o sono com estranhos, sem os ver,
Sem ter coisas para dizer,
Prolongando o absurdo,
Forçosamente divagando sobre as nuvens negras destes dias.


Esquecendo-se...

No rio,
A madeira apodrecia ao sabor das vagas
sem queixumes ou alaridos de nota,
presa às margens por cordas que já não estavam.
O barco jazia sozinho,
descobrindo-se ao ritmo das marés,
esquecido, esquecendo-se.

Chovia e o frio era o mesmo,
o arrepio de Janeiro que não cessava,
fustigando a varanda, batendo furiosamente na janela,
os algerozes lançando esguichos de água e folhas,
inconsoláveis precipitando-se no passeio.


Em mim,
no desespero,
perdi os sentidos gritando,
por não ter movimento nem autonomia,
por ser em mim a minha prisão,
o meu carcereiro escondendo a luz,
fechando as portas.
Os passos na escada,
distantes, cada vez mais,
aliviados e temerosamente mudos.

Calaram-se as vozes, receando
a tempestade próxima que se avizinhava,
o céu, escuro e ruidoso, ameaçando cair sobre nós,
sobre os que desprezam quem é livre,
sobre os que não sendo, desprezam poder ser.

Não se ouviram mais palavras.

Na avenida sobre o mar,
os prédios ofuscando a manhã,
escondendo-se nos vidros, o reflexo.
pintando o rio perdido nas esquinas,
ondulando nas paredes em pedra,
dizendo-me para seguir,
para continuar a caminhar.

Ao longe o barco definha nas águas turvas do tempo,
como eu,
escondido atrás dos reflexos, intransigente,
esquecendo-me que ainda o vejo.
como água



Descobri que te amava num qualquer dia,
Num jardim de ondas
A sós com a nossa visão,
Procurando as palavras que não criam raízes, não escavam feridas,
Pressentindo a nudez acústica da voz,
Nas palavras saltando esquinas de luz,
Hesitando sobre o futuro de descoberta do outro,
O irremediável desencadeando antecipações.

Nas águas turbulentas das emoções,
Imaginação faz-nos esconder atrás das coisas,
Da presença de espírito para partilhar os riscos do desequilíbrio,
Os estragos em águas turvas,
A insolência, ironia, renúncia,
A excitação desconcertante de nos deixarmos assombrar,
Observando o movimento do tempo em surdina,
Desvirginando em segredo a rebeldia embalada pela música,
A paixão atravessando a complacência com risos pirotécnicos,
Cada dia como o anterior, sempre,
Sempre que sejamos nós,
Juntos, como água


segunda-feira, fevereiro 02, 2004

a natureza da acção


O Aeroporto de Lisboa já me permite respirar, suspirar as palavras, as ultimas e derradeiras.
Sorrir perante os inebriantes enganos que já conheço, reencontrados e entregues em delírios obsessivos, outras vezes traçados pela casa, em cada divisão, em cada parte
Um corpo inteiro de volúpia, desmaios, serenos de prazer, sorrisos incandescentes e transbordantes arrancados ao suor salgado da pele, naufragando em sonhos de sémen derramado, elevando os olhos fechados ao cúmulo da abstracção, tentando não pensar, apenas respirar, esquecer o mundo por baixo, lá fora.

Sozinho na multidão de Agosto no porto de Piraeus, em Atenas, esperava-te no mundo, na secreta esperança de naufragar, desaparecer por um instante sem marcas nem gotas do mar que nos salpicaram de sal, morrer com hora marcada, antes de percebermos a realidade, o minuto seguinte à insensatez orgásmica, o único momento de sinceridade antes de acordar para a verdade que pensámos ter perdido, diluída no azul do Mar Egeu, à deriva em ilhas que descobrimos o prazer.
A tua inabilidade para perceber a genética masculina igualava o desconhecimento americano de outras culturas, mas desculpa-se, esquecia-se, esquecemos, nos inúmeros momentos quase contínuos de sexo sem limites às nossas reservas, começando sempre inesperadamente, mas acabando irremediavelmente da mesma forma. “Amo-te” , não como normal palavra soletrada, mas como suspiro aliviando-me da dor do prazer, mais forte do que eu, entranhado na minha genética.
E magoa, magoa-nos a nossa incapacidade de aceitarmos que somos diferentes.

terça-feira, janeiro 27, 2004

fim de festa


Em atmosfera de fim de festa
Suspiros voam já saturados,
Mergulhando em águas menos límpidas,
Expulsando a manhã na varanda do lux.
Assobia-se para o lado, a sensualidade,
Observando dissonâncias de pureza e
Vestidos translúcidos brilhantes,
Soprando, sentindo,
A temperatura porno chique exalada de dentro,
Em gestos operáticos propensos ao horror,
Sem depurações nocivas ao ambiente irreal
De ligeira demência pecadora e carnal,
Instigada, embalada,
Amargo limão que se estranha e entranha,
Como a música.

quarta-feira, janeiro 21, 2004

Ciúme conduz ao homicídio...
...por interposta pessoa.

O piano ficou por aí
Procurando sobreviver sozinho na aridez da minha sala,
Num imenso silêncio entre a música,
Choro de abandono e desamor,
De volúpia predestinada a um frenesim sufocante
E descobertas revolucionárias.
Mas sobre nós desceu uma certa tristeza,
E todos os dias ao telefone
Um apetite voraz pelas outras coisas lá fora,
Um calvário a caminho da purificação,
Mea culpa pelos equívocos que esqueci
E o apetite voraz por tudo,
Que se perdeu na calma sulforosa da minha prisão.
E pela tua mão, a minha,
Já esquecida do toque da música,
Engelhada pela clausura e sedenta de vida,
Levou à minha boca muda
Todas as substâncias proibidas que não sabia pronunciar.

Abriu-se a janela...










sexta-feira, janeiro 16, 2004

Adormecido

Calado como ausente,
Ouvindo, de longe, a voz,
Os olhos cerrando-se com a boca,
Dormente, adormecendo,
Submergindo-se com as coisas da alma
No silêncio que oiço distante,
Escondido nas brumas torpes e poluídas do horizonte citadino,
Confuso mas simples e subtil
como noites de lua cheia entre recortes de betão,
Morrendo e vivendo nas palavras que se perdem e inventam
Quando chamo por alguém na multidão.