sexta-feira, abril 16, 2004


Puro como a mortalidade



Um pouco por todo o lado
Um catálogo suculento de ácidos e lúcidos
De mau sexo e boa bebida
Onde os sóbrios ocultam a perplexibilidade
Dos risos embebidos em pequenos instantes
Cheirando rastos de estima
Crescendo da escuridão para luz
A memória dos dias e o pavor da noite
Ouvindo vozes murmuradas de amores em luz difusa
Rugindo puras como a mortalidade...


“(...)Há em cada instante uma noite sacrificada ao pavor e à alegria(...)”
in Lugar de Herberto Hélder

O eco dos teus passos



A caligrafia estampada em folhas encarquilhadas,
Riscando o mar como cal desfeita na parede esboroada,
Abrindo cicatrizes, salivando,
É poesia que não se contende numa prosa de dias.

Num riso cortado, sem pressa nem lâmina,
Perdendo sangue que alastra e escorre
no esplendor dormente do meio dia de Marraquexe
Que permanece e sucumbe ao fogo da tarde
Escondendo, comendo a tinta do papel.

A sangria tempestuosa e ribombante dos teus passos,
Num furor desonesto e erótico,
Correndo sem escutar o eco da medina,
Deixando-me ao escuro sono da solidão,
Decepando sem misericórdia as cores que nos cobriam,

Mais uma vez ofuscado pela imensa luz transbordante do deserto...

Ao fundo da rua, desde sempre,
como uma promessa

Gotas suspensas sobre a água


O fulcro da harmonia está em cada miligrama de música,
Num ruído telefónico desde Buenos Aires
Ou na inércia aflitiva de uma gota suspensa
Movendo-se como o Inverno,
Errática, cristalina e suja.

Estranho é o mundo da solidão habitada,
Completo de fantasmas escondidos,
Esperando cumprir tarefas
Em tempo lento, esboroando-se rarefeito,
Perto da alucinação.

Esperava algo mais explícito,
Existir para sempre sem mostrar o que está escondido
Como um pesadelo de loucos
Numa enervada disputa pelo nome das coisas
Coleccionando rasuras, resíduos e ruídos de melodias lunares.

E o tempo demorava a revelar-se para nós,
Que nos olhávamos haviam não sei quantas horas,
Lutando e vacilando pela primeira desistência e derrota,
Pelo saque dos sentimentos que teimávamos em defender deste cerco.

Chovia copiosamente e era Verão em Buenos Aires.
Outros tempos os nossos.

terça-feira, abril 06, 2004

OUTROS AUTORES

Música numas escadas
por Pedro Rapoula



Sento-me numa qualquer rua do Chiado.
À volta
as pessoas passam indiferentes à minha presença
à minha solidão.
Sentei-me porque um músico toca guitarra
sem perceber
que me atinge fundo,
muito fundo.
A música penetra-me
e eu fico sem saber exactamente onde estou,
se em Lisboa,
se numa qualquer rua
de uma qualquer cidade…

Agora parou.

Fuma um charro
com dois miúdos que também já o escutam
há algum tempo.
O silêncio de volta à rua devolve-me alguma lucidez.
Volto a perceber que estou em Lisboa,
que estou sozinho,
que tu partiste
e que a vida se reorganizará na tua ausência.
Conversam agora animadamente
enquanto partilham o tal charro.
Tenho vontade de me juntar a eles,
a fumar algo que me faça esquecer a minha dor.
O vinho que bebi ao almoço começa a perder o seu efeito
e eu não quero estar sóbrio.
Há demasiado sol e
é demasiado cedo
para ficar consciente.
É na minha consciência que me torturas.
É na minha consciência que a tua falta dói mais,
a segurares-me,
a compores-me,
a insistires para que fosse sério ,
adulto,
bem comportado.

Recomeçaram a tocar.

Quero voar nesta música.
Quero sentir que não estou de facto aqui,
que posso estar em qualquer lugar.
Quero fugir de ti,
de mim,
de tudo o que me prende ao nosso mundo.
Quero estar só,
ficar só,
dormir só,
mas morro de medo da minha solidão.
Morro de medo da tua saudade…
Quero viver sem ti
e não sei.
Quero respirar fundo
e serenar
por te saber ausente,
como se esta tua ausência não me fosse destruindo por dentro.

A música continua a percorrer-me.

Sinto-me assustado.
São ritmos quentes,
que me atiram à cara as recordações de ti,
que me transportam aos teus pés.
Ouço o rio a correr,
lá longe,
e de súbito,
os minutos passam por mim
com indiferença,
como se o meu sofrimento pouco importasse.

Estou cansado.
Quero viver sem ti e não posso.
Quero possuir-te e odeio-te.
Quero tocar-te e não suporto ver-te.




e o mundo acabou
por Pedro Peralta



E o mundo acabou. Sobram as páginas pisadas, as páginas escritas, as páginas deixadas, as páginas em branco. E o mundo acabou, e sobrou um pouco dessa poesia moribunda na praia do teu olhar, ficaram essas palavras errantes que soletras e vives sem pensar, sem sentir.

Quando o fim acontece o começar rejuvenesce. As cinzas, as cinzas e o caos, as sílabas perdidas, os amores deixados, a saudade que virá nos amores deixados.
Ao começar, em cada novo começar, o fim não existe. Começar é ser criança, é ter a infância em cada gesto, na brandura de cada movimento, é ter tudo de tudo, é despertar, despertar e sentir como bom é com o paladar adornar a aurora, é tomar a brisa fresca pela mão e dançar até o sol nunca se pôr, é saber que o fim não existe. O fim não existe, sussurrei eu de mim para mim ao saber-me não criança. E fim não existe, o começar é que rejuvenesce... Ah... O começar é que apetece!

Estas linhas,
O rio que nelas corre, o rio que delas corre e desagua num rio que é a paisagem dele mesmo, um rio que corre e é maior que o mar que o faz, que o mundo que o é.
As palavras e os barquinhos, as palavras como barquinhos a flutuarem no pensamento e a naufragarem na Poesia, nos poemas onde nasce o nascer, as afundarem-se eternamente nas páginas destas linhas.

Que o fim não traga as lágrimas por o ser, que reste uma melodia de sempre nesse teu sorriso de Outono e primavera, e primavera.
As pétalas das flores dos campos que se perdem no longe do horizonte infinito a voarem e a florirem novos campos e novas flores, e flores, e flores; As palavras que teço a marcarem o compasso de uma canção que compus para te olhar pela ultima vez e gritar-te até amanhã, para te olhar PELA ULTÍMA VEZ E GITAR-TE ATÉ AMANHÃ.

Este sorriso que me invade
E inunda os olhos: que ele me possua para sempre, para eternamente sempre.
Adormece nas linhas que te ofereço mar/caderno/paixão. Vive, Voa,
Até amanhã, ATÉ MANHÃ!
As tuas asas: o infinito, o infinito, O INFINITO: és eterno.


Filho
por Pedro Guilherme-Moreira




A mão dele ainda cabe aberta
Na minha mão fechada.
No dia em que não couber,
vou em busca do abraço
que encerre em mim uma volta.
O olhos dele ainda brilham
nas frestas do olhar do pai.
No dia em que não brilharem,
buscarei em mim o véu
que lhe devolva o horizonte.
E os seus ouvidos vibram,
desaguando os meus passos.
No dia em que não vibrarem,
vou em busca do silêncio
que me deixe ouvir os seus.
Enfim, um dia, o meu filho,
não vai querer um beijo meu
à porta da sua escola.
Nesse dia, a ternura
que docemente traduz
a violência pura
do amor,
vai sentar-se na mão,
a mesma mão
que em si lhe fechava a sua,
e descansar
sobre o seu ombro,
calada.
Se ao menos nesse dia ele deixasse
fechar sobre si o abraço...