sexta-feira, março 26, 2004


A noite ardendo

Hoje já não posso ser assim.
Demasiado avesso à melancolia,
Nunca dizer nunca,
Sentir o que de nós se espera.

Outras memórias vêm à tona,
Perdidas em movimentos redundantes
Resplandecendo na obscuridade intensa:

O jazz polido da tua voz,
Uma comédia de algo que se intromete e arrebata
A noite ardendo só, deflagrando risos
Celebrando euforia.

Magnífica respiração ofegante,
A invejável simplicidade da respiração
Cruzar sopros inconciliáveis.

As diferenças dissimuladas.

A insistente atenção a nada mais que a estrada.

Hoje, pela noite, passam apenas uivos de revolta,
Poesia abandonada
Vadiando como música excelsa na expressão dorida da escrita,
Decantando a depressão como redenção perversa,
A tinta feita ácido ecoando como badaladas.

Não sei se posso ser assim
Mesmo amanhã quando acordar exactamente igual.


“ Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão”
in Um Adeus Português
Alexandre O’Neill”

última gota




amanhece
a cidade dorme e desperta
aos poucos, primeiros, os silêncios e suspiros da manhã
nas margens do inverno desfeito suavemente
passos ecoam e desgastam as esquinas onde curvam os dias sempre iguais,
as pessoas, as nossas, das mesmas ruas e minaretes enclausurados

(pausa)

lágrimas
gotas confundem-se em pólen libertado no vento
repousando em tapetes e relva escura, alcatrão
sepultando a última terra
a que não respira
que envolve em dura prisão eterna
libertadora

- onde estou?

(ao fundo)

- chorando a última gota de paz...



(Escrito em Madrid, no dia 11 de Março de 2004. Para quem insiste em viver)

sexta-feira, março 12, 2004


Quando ninguém olhava

Passava os dias iluminado por uma janela
Esperando os dias seguintes
Escoando memórias inquietas
Esvaziando contornos de feridas
Abertas, sem horas nem promessas
No sossego
Quando ninguém estava a olhar.

Custava viver emparedado no teu silêncio
Devassado de ambições e chama
De olhos abertos, adormecidos sem lágrimas
Com as mãos mordidas, em sangue
Presas violentamente na parede.

Percorrer a vida no meu rasto
Pisando as minhas pegadas
Respirando os mesmos minutos
Sem trabalhos de monta
Que tudo o mais daria muito trabalho
Como falar
Como sonhar
Como inventar
Como vivermos com pressa de viver.

Quando ninguém olhava
Deixei de te ver
Respirei o meus minutos sozinho
Iluminado por uma janela
Á beira do mundo, começando outra vez.
Acorda-me

Um corpo caótico que se devora a si próprio
Numa descida arrojada e temente às profundezas
Abismos impossíveis sem tempo.
Odeias-te.

Nos lugares ermos ou desocupados
Até nas piores avenidas
Em deambulações estridentes
A tua encenação intermitente
Uma farsa ácida de volatibilidade inebriante
Agitando águas dos quotidianos sombrios.
Odeio-te.

Dois corpos à deriva
Expatriados do mundo
Sugando-se
Nas peculiaridades da essência
Num despertar incandescente
Todos os dias destes dias
Rindo e praguejando
Cinismos musicais soando de forma bizarra.
Amo-te, não sei porquê.

Acorda-me, não te esqueças!
Não me esqueças.

“Há sempre uma noite terrível para quem se despede do esquecimento”
Herberto Helder, in Poesia Toda – 1996