quinta-feira, setembro 20, 2007


Fina corda

Flutua no arrepio da porta entreaberta,
Um grito rouco e velado
Que se cala para não se ouvir,
Sustido nas bocas límpidas
Que se tocam devagar e com firmeza,
Dedilhando uma fina corda
Ténue, invisível, insinuante.

São pássaros da solidão,
Fumando deitados,
Com memórias dispersas afundando-se
Com os pés descalços sobre pele macia,
Alongando um fim de tarde pontuado por ciprestes.

quarta-feira, setembro 12, 2007


Corpos ávidos

O espanto da cidade desfaz-se,
Lá no alto,
Num imenso e leviano desperdiçar
da luz da tarde.

Nós, rindo
Do coração batendo, a cada passo
Do corpo tomado pelo perfume
Ávido do poente, imperceptível,
Quebrando como ondas na muralha,
Em silêncio, exaltante,
Gemendo baixinho,
Escondido do vento,
Adormecendo longe do mundo.


Punição

Tal como eu sabia,
A última árvore rendeu-se ontem,
Desfeita em ínfimos pedaços,
Vozes desaparecendo num enorme marulhar pela cidade fora,
Saltando e dançando ao acaso, sobre o asfalto,
Sobre o ombro, o pressentimento.

Tal como disseste,
Procurei, em vão, sombras naquela avenida,
Na nudez do passeio vazio e sujo,
Interminável, definhando ao sol,
Os olhos cedendo a um ardor afinal sombrio,
Entre pó e vozes apressadas,
E o chão árido escondendo o trânsito submerso no túnel.

A cidade condena,
Talvez sem suspeita,
Quando nos desperta e nos queima.





“Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa”
in “Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo”
de Sophia de Melo Breyner

quinta-feira, setembro 06, 2007


Noite desmedida

Sem perder de vista o mar,
Outra noite desmedida
Cresceu com ímpeto da tempestade,
Indiferente ao cansaço,
Ao cheiro dos versos escritos a álcool.

Passeavam vagarosamente pelas ruas, cansados,
Indiferentes ao negrume das árvores velhas,
Os pés alisando o asfalto em tumulto, arrefecido,
Tremendo, os corpos com falta de outros corpos,
Sem sítio perto ou distante,
Sem tempo e com pressa de adormecer.

Outra noite e a cidade crescia para longe.



“(…) ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente
de estar num sítio tanto mais se mais ausente
e mais ausente estar se mais presente
de mais perto se estar se mais distante
de sentir mais o frio em tempo quente (…)”
"To Helena", Nau dos Corvos, Transporte no Tempo,
in Obra Poética vol2
de Ruy Belo

quarta-feira, setembro 05, 2007



Estrada (à procura do fim)

O Outono nos teus lábios esmorece,
Deixa um rasto de cada momento
Em todas as estradas que prometemos abandonar,
Fugidos da luz enegrecida do fim.

Encontrámo-nos neste lugar ínfimo,
Morrendo no mesmo instante
Profundo,
Em furtiva descida à escuridão dos medos,
Quando os olhos se fecham,
Sabendo que por pouco tempo.

Caímos entristecidos.


“(…) a tua morte tem avançado para dentro de mim como uma doença a querer progredir.(…)“
José Luís Peixoto in Nenhum Olhar.

Náufrago

Lá fora é outra cidade,
Indiferente, triste,
Deixando-se observar,
Gasta, a medo amanhecendo,
Afundando-se sem brilho na água escura do cais,
Esquecendo o compasso das marés partidas
Que só a minha janela fechada deixa ver.

Lá fora
É uma e outra vontade que desiste,
Como eu,
Principiando a desaparecer,
Adormecendo, vagueando
Como um nómada,
Na minha casa,
Sem destino e sem caminho,
Perdido.


“(…)eu acreditei no fogo e no silêncio que, de manhã lavam os corpos, tornando-os de novo navegáveis(…)”
Al Berto in “Roulottes da noite de Lisboa”

terça-feira, setembro 04, 2007

Torrente

A multidão desagua em todas as esquinas,
Devora o silêncio com sofreguidão,
Com ímpeto esmagador
De tempestade impiedosa,
Afasta-me da superfície
Uma e outra vez,
Sem surpresas ou descuidos,
Afinal.

A torrente passa longe,
Mas ouve-se aqui.