quinta-feira, agosto 28, 2003

Horas da chuva passada

Em ti, ser é estar, em fogo,
Queimando páginas retorcidas de sentimentos
Rasgar, num só golpe, a carne que nos une,
Na noite quente, suavizada pela brisa,
Vendo a lua, na bruma centenária de uma árvore,
Amando, vociferando contra o passado,
Cruel, mas morto para nós.
Por ti, correndo em tua pele os meus dedos,
Temerosos de ferir, querendo agarrar,
Deixar fugir, em silêncio, da rua vazia,
os pássaros voando, aqui, desde o rio, sem parar,
sem um rumor de ti.
É o feroz medo de estar aqui, neste mundo, só,
Ouvindo a sala vazia ranger no escuro absoluto,
Desprovido de risos, deixando degraus vazios,
Marcados por passos ausentes,
Deixando antever o fim das horas e as horas de chuva,
Ao arrepio de quem declama como ninguém,
Por não existires, neste momento, em mim.
Depois da luz da manhã mais bonita de Lisboa,
O mar batia, saltava e reclamava da tua insolência,
Zombando de tanta inocência,
Por amares sem culpa, verdadeiramente,
Entregando o teu corpo, sem reservas.
O meu interesse por ti, sou eu mesmo,
Ancorado no mar mais profundo,
De vigia na barra às ondas do teu cabelo,
Tatuados levemente, sempre que o dia reaparece,
Descobrindo a cama, já vazia,
De movimentos de paixão, louca.
Agora, nada mais interessa tanto, nem é mais interessante,
do que o meu interesse por ti.

segunda-feira, agosto 25, 2003

Linha vermelha

A linha vermelha onde nos cruzámos
Perdidos e achados, reflectidos em azulejo
Ao longo do corredor, perdendo a timidez
Esquecendo pudores, esquecendo o inevitável.
A dor, talvez devassa, traça invisível
A tinta do teu coração
Esventrado, amassado
Que dói
Como veneno que corrói e não mata.
E como mata
Estar perdido, vendido ao vazio
Entregue a mares por cima de nós
Olhando outra rua na nossa.
Não nos encontrámos
Num sítio que não marcámos
Por não sabermos qual
E a linha tem muitas estações
Onde não batem corações
Que não morrem, que não choram
Que não sabem.
Queríamos alguém como nós
Não como duplicados, não como cópias
Mas como nós, numa mesma consciência
De sabermos que éramos sempre nós.
E vi que já passava da hora
Que talvez houvesse demora
E em cinco minutos um coração não pára
Por loucura ou desespero, porque sim
Só por momentos, instantes
Nos mesmos em que julguei que te vi
Na ansiedade de saber
Se virias no próximo comboio.
Não quero que venhas
Não quero que me doa de novo
Como doeu antes, a espera de quem não vem
De quem se perdeu, com intenção
Com desmesura maldade de quem escolhe
Noutra linha que não esta
Bastando outra qualquer
Mais ténue e fria,
Mostrando-me o vazio da loucura
Mesmo ali, no mesmo sítio e instante
Na mesma linha
Onde nunca nos conhecemos.

terça-feira, agosto 19, 2003

Mar desfeito

O vento quente dos suspiros, queimava os olhos
Amedrontados diante a esperança, jazida
cheirando a óleo, sabendo a gritos de coragem,
esquecidos num abraço de uma vida.
Em ruínas, corações esmagados
perdidos num beijo de despedida.
Ouviam-se mais ...
E no cais, amontoavam-se os navios,
Tristes, pesados, podres,
como seria o resto do tempo,
para lá da barra, bem longe da vista,
onde fraqueza que não se evita,
e as almas escurecem e definham,
no retorno compulsivo da vertigem da terra,
perdida das mãos e desfeita no mar.
Ficámos para trás... a um horizonte de distância.

quinta-feira, agosto 14, 2003

Querer

Onde quiseres, o mar molha-te os pés,
o sol escalda-te as mãos.
O que queres são asas de sal,
mergulhos de solidão, em dunas de conchas.
Tenta contar os grãos de areia,
ficarás feliz com uma mão cheia.
Tenta voar como uma gaivota,
e adormecerás com o vento no rosto,
e um pôr do sol eterno.

quarta-feira, agosto 13, 2003

Mil

Se tu quiseres, se tu deixares, passaria todo o tempo contigo,
fosse o tempo um dia, talvez a eternidade.
Mergulhava na imensidão dos teus olhos e deixava-me afogar.... não pedia sequer para me salvar.
Beberia da tua voz os comandos da minha vida,
os remédios das minhas angústias, a paz da minha alma.
As minhas mãos seria a tua segunda pele, que te arrepiaria o desejo, te confortaria no frio da dor.
Se tu quisesses, se tu deixasses, nasceria de novo, morreria mil vezes, por cada sinal da tua existência, por cada murmúrio da tua alma.
Se quisesses levar parte de mim...eu deixava.
Se deixasses... eu queria.

segunda-feira, agosto 11, 2003

Alturas

É estranha e disforme a forma como sobe,
Nas alturas, nesta altura,
O calor...
Sem brisa nem prenúncio,
De chuva,
De nuvens.
Não me lembro delas nem da sombra do mar.
Delas, a minha no cais,
Picada por gaivotas,
Riscada por barcos laranja,
De um lado para o outro,
Com gente dentro, muitas, juntas,
Em silêncio.
Nestas alturas,
Verão em Lisboa,
O melhor seria não estar,
Aqui, mas noutro lugar,
Onde odiaria estar, senão aqui.
Não penso. Cansa. Não é altura.
Não é estação.
A dos barcos, de mármore fresco, só, sem alma.
As pessoas, a multidão com calor, afogueando,
Atravessando a cidade,
De outra para esta, margem,
Em silêncio, sem brilho, com reflexo.
-“Está na altura!” alguém diz certamente,
de forma estranha e disforme,
assim como se movimentam as pessoas,
e se cruzam,
como sombras no cais,
picadas por gaivotas e riscadas por barcos,
na cidade, sem alturas para falar, sem alturas para se ver.
Está calor e não é altura para pensar.