quinta-feira, janeiro 31, 2008


Negro prado cintilante


Sigo o rasto rasurado dos sonhos,
Sem estrelas nem mapa,
Cruzando abismos de olhos fechados,
Embalado na respiração ordeira e transeunte
Dos mais simples intentos que invento e
Que desmembro à nascença.

É inaudível, transparente, fétida e dolorosa
A geografia rasgada da cidade,
Monstro sub-reptício devorando-se em sofreguidão,
Que fende, cede, abre, pulsa, rasga,
Corrói o horizonte fissurado
Pela luz difusa deste negro prado cintilante.

O nome da viagem é o caminho para a morada esquecida.



(…)este negro prado de cimento cintilante
de ramos e segredos oníricos
de silêncios dissonantes
de caos harmoniosos (…)”
in “Nave Mãe” de Pedro Peralta





Ferrugem

Por entre as grades e a neblina
Prendem-se as luzes ferrugentas do porto,
Acalma-se a vastidão dos gritos metálicos,
Numa longa descida às horas mortas da madrugada.

Passos nascem e morrem nas ruas largas dos aterros ribeirinhos,
Perdidos,
Afogados em chuva lacrimosa
Nas paixões que arrefecem,
Abandonas à ferrugem dos quartos vazios e
Estuque esboroado,
Despontando das fachadas tristes,
Precipitando-se das sacadas podres que assomam nas colinas.

Em todas as janelas, o horizonte é fundo e triste.
Entrego-me.








“Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer (…)”
In “O Sentimento de um Ocidental” de Cesário Verde

quinta-feira, janeiro 24, 2008


Conta (me)

Às doze passa o comboio e o barco
Dos cinco minutos depois, avisa a cidade, agora
Que se afasta da marginal, aos quinze minutos de cada hora,
A que demoro, todos os dias,
Para as avenidas altas, às treze,
Onde espero mais vinte, eternidades, por ti,
E gasto mais dez, cigarros, implacáveis
Com os meus trinta e um anos de vida,
Perfeitamente realizados
A cada uma das incontáveis ocasiões que te toco,
Amaldiçoados dedos, cinco, os meus e
As vezes ao dia que digo que vou fugir, outra mentira,
E voltar aos teus braços, quatro,
Envolvidos todas as manhãs, mil
Histórias contadas a cada sonho e noite que perco da conta, sempre,
Quando sabemos que isto não vai mudar,
Sempre que nos lembrarmos de nos questionar,
Se somos dois ou um.

Conta-me, quanto falta para não faltar mais nada,
Para sermos deuses e enquanto quisermos,
Para termos a eternidade até que caíamos mortos,
Como heróis,
Repletos de tédio ou de excesso de nós.

sábado, janeiro 12, 2008


Gozo caprichoso

És,
Caprichoso gozo atormentado,
Prazer obsceno encoberto,
Palavra que não existe,
Segredo cansado, decifrado,
Inferno,
Sangue ardendo profundamente,
Eco do riso que arranha o relento,
No paraíso,
Veneno de bem-querer,
Sombra que esconde, finge, vicia,
Crua verdade, maldade fugidia
Que tropeça,
Em mim.

sexta-feira, janeiro 11, 2008


Argonauta

Vens de feição, tempestade solta,
Amor cavado e de ondas altas
De correntes escuras fustigando os antípodas,
Afogando de desejo, pressa, medo e engano,
Perdida, perdendo, afundando-me, em mar sem sentido.

Não vás sem que eu saiba porque vens,
Perde-te, acha-me nas dúvidas revoltas,
Nas notas libertas de um obscuro fado,
Na chuva que não pára
E te obriga a ficar,
A olhar para dentro do que deito para fora,
Decifrando verbos claros e adjectivos proibidos.

As sombras que assomam na rua
Abrem-me o coração a cinzel,
Destemidas, sem medos, com força e inspiração,
Tágides caladas, em voz funda e firme,
Indicando-me as amarras trocadas
Nas nossas duas margens.

Sopras-me o mundo que se perde no embaraço,
Deitas-me fora, choras
Renegas as escolhas sonolentas dos tempos, do passado,
Sou eu, barco perdido, destemido Argonauta
Que não descansa.
Tu, Adamastor ferido,
Arriscando matar de tanto amar.

sábado, janeiro 05, 2008


Segredo

Uma voz esplêndida viajando,
Uma orquídea selvagem
De modos extravagantes,
Vagueando nos ouvidos do mundo,
Brotando de uma nua e virtuosa cidade
De ruas e musica cheias de tempo e pressa,
De calma e de dias a menos para outros dias,
Subindo e descendo nos elevadores rabugentos
Mas de cheios corações rendilhados,
De braços abertos respirando
Os risos nocturnos,
Olhando a encosta que se estende incólume e teimosa
Como a felicidade agora decifrada
Perante nós,
Confessores clandestinos sorrindo,
Saboreando os segredos que se revelam em surdina.