terça-feira, dezembro 30, 2003

Fazia tarde


Fazia a tarde, horas a mais,
Escapando-se pelos dedos, a areia presa ao teu rasto,
Em linha com o céu, sem estrelas, desaparecidas,
Numa calmaria diluída em maresia e espuma,
Bocejando, perdido à deriva no pontão,
Deixando o último sol aquecer o ar.
De olhos fechados, ouvindo os insectos no vazio,
Desconhecemos juntos o fim do dia,
Nada perguntando e consentindo,
Soltando fingimento, sorrindo,
Aquecendo, sem chama, a alma já fria.
Inadaptado

Sempre inadaptado.
Sem medo das palavras e da solidão
Pulsando nas ruas, longe da vista,
Acossadas, sobre um manto de ópio
Resistindo ao deslumbramento intemporal e cosmopolita,
Da inércia claustrofóbica e ofegante das cidades.
A experimentação e o sonho são permitidos por Deus,
Como tertúlias intimas e melancólicas,
Nunca como pactos fausticos e juramentos causticos,
Antes coniventes com os dias futuros da criação.
A solidão recusa explicar-se a uma só pessoa.
As ideias não se diluem na rotina porque imperceptíveis,
Obedecem a impulsos dissonantes,
A olhares fulgurantes,
Nunca esperando que por elas se espere.
Igualmente diferentes, as cidades.
Vibrando as vozes presas dos rótulos,
De diferentes formas assinaladas e escondidas,
Em latitudes geográficas de bolso.
As cidades, como tinta da china,
Sopradas numa folha de papel
Espalhando em distâncias fulgurantes subúrbios detestáveis,
Adubando violentamente as ideias,
Elevando-as à diferença.

Sempre inadaptado, enquanto pensar.
Nocturnos Suburbanos


Tudo se reconhece e nada se conhece,
Entre equívocos de betão e ferro,
Inoculando o espectador viajante
Em tons uniformes e ausência de cor,
Atordoando sentidos,
Mecanizando a inexistência de rituais.
A aparente esquizofrenia impera no mundo natural,
Este de dormir tranquilamente
Em seis carruagens hitlerianas,
Expurgadas de manifestações de vida,
Inventado o misticismo e a alquimia
Da melancolia a caminho do trabalho
De criaturas híbridas à deriva na vida moderna de segunda geração.
A idade maior do global e uniforme,
Das caricaturas exportáveis de gatos com o cio
De lá do oceano a cidades abraçadas e confundíveis
Vampirizando-se,
Sugando vida e respiração ao longo dos carris.
O amor feito em subliminações libidinosas,
Glacial e indiferente,
Fornecido e vendido via contacto seguro e higiénico,
Em dias tardios e lentos,
Ritmado por calendários semanais,
Sem forças nem forcas de nylon para apressar a mudança.
Todos, inconscientes, recusando ver
A tenebrosa fantasia da realidade.
Ouve a cidade

I
Escutar o som, o murmúrio do silêncio da água, o rio acariciando a pele de pedra branca, em vela, ao vento. Os gritos de calma na multidão, sobre as árvores, de ferro e vidro, que reluzem, adornadas em reflexos opacos como silhuetas de cidadelas iluminando a água, tremendo, cantando, aceitando o fado, o inverno esperando o verão. Descer a calçada com a manhã, escondendo o cansaço e a luxúria, proibida, pecado originalmente inventado entre o caos do rumor e movimento nas avenidas, correndo para abraçar as risos ao alto, crescendo como fogo de artifício, zunindo em carris de ferro feitos teias

II
Cheira a mar. Respiras suavemente, ondulando a pele ao mínimo toque. Atiro uma pedra e os meus dedos tocam-te três vezes no corpo, até caírem na tua boca, depois de outra onda. Salpicos de poesia murmurados ao ouvido, indo e vindo, enchendo a maré, transbordando amor ou outra coisa tão boa como esta, de estar aqui, contigo. Sinto o cheiro do cais subir a rua, do horizonte até aqui, onde está o teu perfume, o aroma dos teus olhos. Uma investida sobre ti e as gaivotas voam rasando a água, ameaçando pousar, insinuando, finjo beijar-te desinteressadamente.
Do mar aqui, de ti a mim, uma avenida marginal, tapada por casas, por roupa que queremos arrancar, que impede o vento de circular, a nós de respirar. O sol aquece-te, junto a mim, enrolados numa manta, na névoa que se levanta, no ecoar dos passos, das batidas do coração incontidas e descontroladas, lançando sangue na rua como alma nas veias..
Assim como um estranho, vindo do outro lado da rua, cheguei à tua margem convidando-me a entrar, sem saber o teu nome. A tua casa, branca, cheira a mar, a tua alma ocre, pele ousada, colou-me aos olhos tristes por nada. Enrolados na cama, nos ferros da tua varanda, esperando que me perdesse, deixei-me dominar. Entreguei-me para que fosses minha. Nem com a manhã deixaria de ser teu.

segunda-feira, dezembro 22, 2003

Saudade

Suspensos por sílabas e palavras, apenas,
Subimos ao mastro, almas vigilantes
Temendo não ver, chorando, jurando, segredando não ter medo
Da madrugada uivando nas cordas
E o marulhar soturno na amurada,
Murmurando promessas salgadas,
Juras de bem querer eterno,
A conversão e a redenção
Ante o céu e o mar que nele se prolonga.

O universo é um ruído a converter-se em harmonia,
um corpo a mostrar a alma. (Teixeira de Pascoaes, Aforismos)

sexta-feira, dezembro 19, 2003

Equinócio

Ao cair da tarde,
A mudança de estação,
Reflecte-se na cidade,
Percorrendo escadarias,
Agitando a folhagem e
E os gemidos das árvores,
Na luz e no ar,
Crescendo como um rio,
Detendo-se por algum tempo,
Nos primeiros passos de uma risada prestes a começar,
Observando,
Que numa fina linha poderá estar todo o mundo,
Que não se contém nem se domina,
Que cresce solto e determinado,
De forma subjectiva como a análise de uma paixão.
E noite desperta, fresca,
Quando finalmente dança o tempo no mundo.

quinta-feira, dezembro 18, 2003

Inspiração de poder mentir (o meu jazz)

Espíritos inquietos interrompem alguma música,
Reflectem-se, anunciam os perigos e a morte flagrante,
Atiram para o fundo de si próprios canções obscuras,
O som quente das vozes elevadas acima dos risos,
Irreais e ofegantes,
Deslizando no brilho negro do vinil.
No negro abafado do fascínio obsessivo pela incursão e fluidez,
Ocasião para um lamento.
Depois do vazio, um céu inteiro dentro do peito,
Como uma metáfora aprisionada,
Da sonoridade dos gestos e a carnalidade das vozes.

Como se escolheria olhar em Nova Iorque,
A forma ávida de boémia que os ausentes manifestam,
A presunção da certeza e a expiação de pecados?
Aqui, no meu lugar,
Desvio de um mapa paralelo às linhas traçadas,
Para onde vai a raiva e o medo,
Sufoca-se em delírios rarefeitos pela experimentação dos dias,
Queimam-se compêndios e interlúdios fingidos,
Movimentos perpétuos de recusa da nostalgia e da tristeza,
Dos quais cansei-me.
No mundo de incertezas é inspirador poder mentir,
Sorrir sobre a estupidez como acto de agitação,
Tais virtuosos arrependidos de vícios recuperados,
Sem hesitações de rumo.

No brilho negro do vinil,
A música não mais se interrompe,
Libertando letras fluidas,
Sentidamente fingidas.

sexta-feira, dezembro 05, 2003

Descanso à noite


Sem guia ou vigília, sem estribos
Porém taciturna, a noite chega,
Sem horizonte nem horas para deixar de morrer aos poucos,
Na evidência abrupta e genética de ignorar as evidências,
O óbvio que é a distância daqui à morte
Observando a rua do alto de vinte andares, sem luz,
Fugindo aos cantos indeterminados dos meus ébrios suspiros,
De tédio e apatia.
À noite, no silêncio infinito e escuro da minha janela,
A água quieta vibra no vidro, lenta, dilatória
Como sangue passando abaixo da minha pele,
O suor pingando sobre as pestanas, ardendo nos olhos,
Fazendo-me querer arrancar esta pele de impotência e frustração.
Tenho medo das dúvidas e da certeza,
De sair e atravessar a cidade, evadir-me sem suspeita
E descobrir apenas as alegrias que me são permitidas,
Fetiches tão vazios e sem sentido
Como este open space claustrofóbico,
Ordenado, limpo e sufocante.

*
Beijo o vidro e o meu reflexo foge da janela.
*
A distância daqui à rua desaparece,
Inexplicavelmente,
De uma forma indolor.

Instantes

Soltas um suspiro pela minha dor,
uma oração murmurada e ausente
em doce canto,
o adeus sem a amargura das palavras,
sem gratidão pelas almas que choram,
as nossas,
a minha, sem te esqueça,
sem um só minuto que não te adore,
porque as almas que se amam não se esquecem,
não se ausentam, não dizem adeus.
A eternidade não é o instante de um suspiro,
passa o tempo
e a vida segue de outras formas,
palpitante
exuberante como o sangue e a chama
que existe sem ti.
Mas permaneces,
muito para além das horas.

*

No silêncio, enfim, debruça-se sobre o corpo inerte e beija-lhe a testa. As mãos enroladas num pano, limpam-se de culpas, lavam a consciência. Veste o casaco, demoradamente, e abandona a arma em descanso sobre a mesa, antes de sair pela porta já aberta. Sorriu. Guardei-a só para mim.



Daniel Bayesha
Vento Fugitivo

Move-se em café arrefecido
Uma certa tristeza de ser urbano,
Em cativeiro,
Um vento fugitivo, em vermelho vivo,
Sem o sabor da manhã ,
Apenas com a luz que atravessa o ar,
Morta há muito tempo, no abismo
Das tardes de outono sem cor,
Invernos de silêncio à noite.

E o café evapora-se sem deixar cheiro
Consumindo-se no escuro cinzento e sujo.
Onde não chove,
O céu, espelho da cidade que não termina
Chora água de ferro, dura,
Apenas transparente na minha mão
Estendida, saindo das arcadas.


Daniel Bayesha