Fazia tarde
Fazia a tarde, horas a mais,
Escapando-se pelos dedos, a areia presa ao teu rasto,
Em linha com o céu, sem estrelas, desaparecidas,
Numa calmaria diluída em maresia e espuma,
Bocejando, perdido à deriva no pontão,
Deixando o último sol aquecer o ar.
De olhos fechados, ouvindo os insectos no vazio,
Desconhecemos juntos o fim do dia,
Nada perguntando e consentindo,
Soltando fingimento, sorrindo,
Aquecendo, sem chama, a alma já fria.
terça-feira, dezembro 30, 2003
Inadaptado
Sempre inadaptado.
Sem medo das palavras e da solidão
Pulsando nas ruas, longe da vista,
Acossadas, sobre um manto de ópio
Resistindo ao deslumbramento intemporal e cosmopolita,
Da inércia claustrofóbica e ofegante das cidades.
A experimentação e o sonho são permitidos por Deus,
Como tertúlias intimas e melancólicas,
Nunca como pactos fausticos e juramentos causticos,
Antes coniventes com os dias futuros da criação.
A solidão recusa explicar-se a uma só pessoa.
As ideias não se diluem na rotina porque imperceptíveis,
Obedecem a impulsos dissonantes,
A olhares fulgurantes,
Nunca esperando que por elas se espere.
Igualmente diferentes, as cidades.
Vibrando as vozes presas dos rótulos,
De diferentes formas assinaladas e escondidas,
Em latitudes geográficas de bolso.
As cidades, como tinta da china,
Sopradas numa folha de papel
Espalhando em distâncias fulgurantes subúrbios detestáveis,
Adubando violentamente as ideias,
Elevando-as à diferença.
Sempre inadaptado, enquanto pensar.
Sempre inadaptado.
Sem medo das palavras e da solidão
Pulsando nas ruas, longe da vista,
Acossadas, sobre um manto de ópio
Resistindo ao deslumbramento intemporal e cosmopolita,
Da inércia claustrofóbica e ofegante das cidades.
A experimentação e o sonho são permitidos por Deus,
Como tertúlias intimas e melancólicas,
Nunca como pactos fausticos e juramentos causticos,
Antes coniventes com os dias futuros da criação.
A solidão recusa explicar-se a uma só pessoa.
As ideias não se diluem na rotina porque imperceptíveis,
Obedecem a impulsos dissonantes,
A olhares fulgurantes,
Nunca esperando que por elas se espere.
Igualmente diferentes, as cidades.
Vibrando as vozes presas dos rótulos,
De diferentes formas assinaladas e escondidas,
Em latitudes geográficas de bolso.
As cidades, como tinta da china,
Sopradas numa folha de papel
Espalhando em distâncias fulgurantes subúrbios detestáveis,
Adubando violentamente as ideias,
Elevando-as à diferença.
Sempre inadaptado, enquanto pensar.
Nocturnos Suburbanos
Tudo se reconhece e nada se conhece,
Entre equívocos de betão e ferro,
Inoculando o espectador viajante
Em tons uniformes e ausência de cor,
Atordoando sentidos,
Mecanizando a inexistência de rituais.
A aparente esquizofrenia impera no mundo natural,
Este de dormir tranquilamente
Em seis carruagens hitlerianas,
Expurgadas de manifestações de vida,
Inventado o misticismo e a alquimia
Da melancolia a caminho do trabalho
De criaturas híbridas à deriva na vida moderna de segunda geração.
A idade maior do global e uniforme,
Das caricaturas exportáveis de gatos com o cio
De lá do oceano a cidades abraçadas e confundíveis
Vampirizando-se,
Sugando vida e respiração ao longo dos carris.
O amor feito em subliminações libidinosas,
Glacial e indiferente,
Fornecido e vendido via contacto seguro e higiénico,
Em dias tardios e lentos,
Ritmado por calendários semanais,
Sem forças nem forcas de nylon para apressar a mudança.
Todos, inconscientes, recusando ver
A tenebrosa fantasia da realidade.
Tudo se reconhece e nada se conhece,
Entre equívocos de betão e ferro,
Inoculando o espectador viajante
Em tons uniformes e ausência de cor,
Atordoando sentidos,
Mecanizando a inexistência de rituais.
A aparente esquizofrenia impera no mundo natural,
Este de dormir tranquilamente
Em seis carruagens hitlerianas,
Expurgadas de manifestações de vida,
Inventado o misticismo e a alquimia
Da melancolia a caminho do trabalho
De criaturas híbridas à deriva na vida moderna de segunda geração.
A idade maior do global e uniforme,
Das caricaturas exportáveis de gatos com o cio
De lá do oceano a cidades abraçadas e confundíveis
Vampirizando-se,
Sugando vida e respiração ao longo dos carris.
O amor feito em subliminações libidinosas,
Glacial e indiferente,
Fornecido e vendido via contacto seguro e higiénico,
Em dias tardios e lentos,
Ritmado por calendários semanais,
Sem forças nem forcas de nylon para apressar a mudança.
Todos, inconscientes, recusando ver
A tenebrosa fantasia da realidade.
Ouve a cidade
I
Escutar o som, o murmúrio do silêncio da água, o rio acariciando a pele de pedra branca, em vela, ao vento. Os gritos de calma na multidão, sobre as árvores, de ferro e vidro, que reluzem, adornadas em reflexos opacos como silhuetas de cidadelas iluminando a água, tremendo, cantando, aceitando o fado, o inverno esperando o verão. Descer a calçada com a manhã, escondendo o cansaço e a luxúria, proibida, pecado originalmente inventado entre o caos do rumor e movimento nas avenidas, correndo para abraçar as risos ao alto, crescendo como fogo de artifício, zunindo em carris de ferro feitos teias
II
Cheira a mar. Respiras suavemente, ondulando a pele ao mínimo toque. Atiro uma pedra e os meus dedos tocam-te três vezes no corpo, até caírem na tua boca, depois de outra onda. Salpicos de poesia murmurados ao ouvido, indo e vindo, enchendo a maré, transbordando amor ou outra coisa tão boa como esta, de estar aqui, contigo. Sinto o cheiro do cais subir a rua, do horizonte até aqui, onde está o teu perfume, o aroma dos teus olhos. Uma investida sobre ti e as gaivotas voam rasando a água, ameaçando pousar, insinuando, finjo beijar-te desinteressadamente.
Do mar aqui, de ti a mim, uma avenida marginal, tapada por casas, por roupa que queremos arrancar, que impede o vento de circular, a nós de respirar. O sol aquece-te, junto a mim, enrolados numa manta, na névoa que se levanta, no ecoar dos passos, das batidas do coração incontidas e descontroladas, lançando sangue na rua como alma nas veias..
Assim como um estranho, vindo do outro lado da rua, cheguei à tua margem convidando-me a entrar, sem saber o teu nome. A tua casa, branca, cheira a mar, a tua alma ocre, pele ousada, colou-me aos olhos tristes por nada. Enrolados na cama, nos ferros da tua varanda, esperando que me perdesse, deixei-me dominar. Entreguei-me para que fosses minha. Nem com a manhã deixaria de ser teu.
I
Escutar o som, o murmúrio do silêncio da água, o rio acariciando a pele de pedra branca, em vela, ao vento. Os gritos de calma na multidão, sobre as árvores, de ferro e vidro, que reluzem, adornadas em reflexos opacos como silhuetas de cidadelas iluminando a água, tremendo, cantando, aceitando o fado, o inverno esperando o verão. Descer a calçada com a manhã, escondendo o cansaço e a luxúria, proibida, pecado originalmente inventado entre o caos do rumor e movimento nas avenidas, correndo para abraçar as risos ao alto, crescendo como fogo de artifício, zunindo em carris de ferro feitos teias
II
Cheira a mar. Respiras suavemente, ondulando a pele ao mínimo toque. Atiro uma pedra e os meus dedos tocam-te três vezes no corpo, até caírem na tua boca, depois de outra onda. Salpicos de poesia murmurados ao ouvido, indo e vindo, enchendo a maré, transbordando amor ou outra coisa tão boa como esta, de estar aqui, contigo. Sinto o cheiro do cais subir a rua, do horizonte até aqui, onde está o teu perfume, o aroma dos teus olhos. Uma investida sobre ti e as gaivotas voam rasando a água, ameaçando pousar, insinuando, finjo beijar-te desinteressadamente.
Do mar aqui, de ti a mim, uma avenida marginal, tapada por casas, por roupa que queremos arrancar, que impede o vento de circular, a nós de respirar. O sol aquece-te, junto a mim, enrolados numa manta, na névoa que se levanta, no ecoar dos passos, das batidas do coração incontidas e descontroladas, lançando sangue na rua como alma nas veias..
Assim como um estranho, vindo do outro lado da rua, cheguei à tua margem convidando-me a entrar, sem saber o teu nome. A tua casa, branca, cheira a mar, a tua alma ocre, pele ousada, colou-me aos olhos tristes por nada. Enrolados na cama, nos ferros da tua varanda, esperando que me perdesse, deixei-me dominar. Entreguei-me para que fosses minha. Nem com a manhã deixaria de ser teu.
segunda-feira, dezembro 22, 2003
Saudade
Suspensos por sílabas e palavras, apenas,
Subimos ao mastro, almas vigilantes
Temendo não ver, chorando, jurando, segredando não ter medo
Da madrugada uivando nas cordas
E o marulhar soturno na amurada,
Murmurando promessas salgadas,
Juras de bem querer eterno,
A conversão e a redenção
Ante o céu e o mar que nele se prolonga.
O universo é um ruído a converter-se em harmonia,
um corpo a mostrar a alma. (Teixeira de Pascoaes, Aforismos)
Suspensos por sílabas e palavras, apenas,
Subimos ao mastro, almas vigilantes
Temendo não ver, chorando, jurando, segredando não ter medo
Da madrugada uivando nas cordas
E o marulhar soturno na amurada,
Murmurando promessas salgadas,
Juras de bem querer eterno,
A conversão e a redenção
Ante o céu e o mar que nele se prolonga.
O universo é um ruído a converter-se em harmonia,
um corpo a mostrar a alma. (Teixeira de Pascoaes, Aforismos)
sexta-feira, dezembro 19, 2003
Equinócio
Ao cair da tarde,
A mudança de estação,
Reflecte-se na cidade,
Percorrendo escadarias,
Agitando a folhagem e
E os gemidos das árvores,
Na luz e no ar,
Crescendo como um rio,
Detendo-se por algum tempo,
Nos primeiros passos de uma risada prestes a começar,
Observando,
Que numa fina linha poderá estar todo o mundo,
Que não se contém nem se domina,
Que cresce solto e determinado,
De forma subjectiva como a análise de uma paixão.
E noite desperta, fresca,
Quando finalmente dança o tempo no mundo.
Ao cair da tarde,
A mudança de estação,
Reflecte-se na cidade,
Percorrendo escadarias,
Agitando a folhagem e
E os gemidos das árvores,
Na luz e no ar,
Crescendo como um rio,
Detendo-se por algum tempo,
Nos primeiros passos de uma risada prestes a começar,
Observando,
Que numa fina linha poderá estar todo o mundo,
Que não se contém nem se domina,
Que cresce solto e determinado,
De forma subjectiva como a análise de uma paixão.
E noite desperta, fresca,
Quando finalmente dança o tempo no mundo.
quinta-feira, dezembro 18, 2003
Inspiração de poder mentir (o meu jazz)
Espíritos inquietos interrompem alguma música,
Reflectem-se, anunciam os perigos e a morte flagrante,
Atiram para o fundo de si próprios canções obscuras,
O som quente das vozes elevadas acima dos risos,
Irreais e ofegantes,
Deslizando no brilho negro do vinil.
No negro abafado do fascínio obsessivo pela incursão e fluidez,
Ocasião para um lamento.
Depois do vazio, um céu inteiro dentro do peito,
Como uma metáfora aprisionada,
Da sonoridade dos gestos e a carnalidade das vozes.
Como se escolheria olhar em Nova Iorque,
A forma ávida de boémia que os ausentes manifestam,
A presunção da certeza e a expiação de pecados?
Aqui, no meu lugar,
Desvio de um mapa paralelo às linhas traçadas,
Para onde vai a raiva e o medo,
Sufoca-se em delírios rarefeitos pela experimentação dos dias,
Queimam-se compêndios e interlúdios fingidos,
Movimentos perpétuos de recusa da nostalgia e da tristeza,
Dos quais cansei-me.
No mundo de incertezas é inspirador poder mentir,
Sorrir sobre a estupidez como acto de agitação,
Tais virtuosos arrependidos de vícios recuperados,
Sem hesitações de rumo.
No brilho negro do vinil,
A música não mais se interrompe,
Libertando letras fluidas,
Sentidamente fingidas.
Espíritos inquietos interrompem alguma música,
Reflectem-se, anunciam os perigos e a morte flagrante,
Atiram para o fundo de si próprios canções obscuras,
O som quente das vozes elevadas acima dos risos,
Irreais e ofegantes,
Deslizando no brilho negro do vinil.
No negro abafado do fascínio obsessivo pela incursão e fluidez,
Ocasião para um lamento.
Depois do vazio, um céu inteiro dentro do peito,
Como uma metáfora aprisionada,
Da sonoridade dos gestos e a carnalidade das vozes.
Como se escolheria olhar em Nova Iorque,
A forma ávida de boémia que os ausentes manifestam,
A presunção da certeza e a expiação de pecados?
Aqui, no meu lugar,
Desvio de um mapa paralelo às linhas traçadas,
Para onde vai a raiva e o medo,
Sufoca-se em delírios rarefeitos pela experimentação dos dias,
Queimam-se compêndios e interlúdios fingidos,
Movimentos perpétuos de recusa da nostalgia e da tristeza,
Dos quais cansei-me.
No mundo de incertezas é inspirador poder mentir,
Sorrir sobre a estupidez como acto de agitação,
Tais virtuosos arrependidos de vícios recuperados,
Sem hesitações de rumo.
No brilho negro do vinil,
A música não mais se interrompe,
Libertando letras fluidas,
Sentidamente fingidas.
sexta-feira, dezembro 05, 2003
Descanso à noite
Sem guia ou vigília, sem estribos
Porém taciturna, a noite chega,
Sem horizonte nem horas para deixar de morrer aos poucos,
Na evidência abrupta e genética de ignorar as evidências,
O óbvio que é a distância daqui à morte
Observando a rua do alto de vinte andares, sem luz,
Fugindo aos cantos indeterminados dos meus ébrios suspiros,
De tédio e apatia.
À noite, no silêncio infinito e escuro da minha janela,
A água quieta vibra no vidro, lenta, dilatória
Como sangue passando abaixo da minha pele,
O suor pingando sobre as pestanas, ardendo nos olhos,
Fazendo-me querer arrancar esta pele de impotência e frustração.
Tenho medo das dúvidas e da certeza,
De sair e atravessar a cidade, evadir-me sem suspeita
E descobrir apenas as alegrias que me são permitidas,
Fetiches tão vazios e sem sentido
Como este open space claustrofóbico,
Ordenado, limpo e sufocante.
*
Beijo o vidro e o meu reflexo foge da janela.
*
A distância daqui à rua desaparece,
Inexplicavelmente,
De uma forma indolor.
Sem guia ou vigília, sem estribos
Porém taciturna, a noite chega,
Sem horizonte nem horas para deixar de morrer aos poucos,
Na evidência abrupta e genética de ignorar as evidências,
O óbvio que é a distância daqui à morte
Observando a rua do alto de vinte andares, sem luz,
Fugindo aos cantos indeterminados dos meus ébrios suspiros,
De tédio e apatia.
À noite, no silêncio infinito e escuro da minha janela,
A água quieta vibra no vidro, lenta, dilatória
Como sangue passando abaixo da minha pele,
O suor pingando sobre as pestanas, ardendo nos olhos,
Fazendo-me querer arrancar esta pele de impotência e frustração.
Tenho medo das dúvidas e da certeza,
De sair e atravessar a cidade, evadir-me sem suspeita
E descobrir apenas as alegrias que me são permitidas,
Fetiches tão vazios e sem sentido
Como este open space claustrofóbico,
Ordenado, limpo e sufocante.
*
Beijo o vidro e o meu reflexo foge da janela.
*
A distância daqui à rua desaparece,
Inexplicavelmente,
De uma forma indolor.
Instantes
Soltas um suspiro pela minha dor,
uma oração murmurada e ausente
em doce canto,
o adeus sem a amargura das palavras,
sem gratidão pelas almas que choram,
as nossas,
a minha, sem te esqueça,
sem um só minuto que não te adore,
porque as almas que se amam não se esquecem,
não se ausentam, não dizem adeus.
A eternidade não é o instante de um suspiro,
passa o tempo
e a vida segue de outras formas,
palpitante
exuberante como o sangue e a chama
que existe sem ti.
Mas permaneces,
muito para além das horas.
*
No silêncio, enfim, debruça-se sobre o corpo inerte e beija-lhe a testa. As mãos enroladas num pano, limpam-se de culpas, lavam a consciência. Veste o casaco, demoradamente, e abandona a arma em descanso sobre a mesa, antes de sair pela porta já aberta. Sorriu. Guardei-a só para mim.
Daniel Bayesha
Soltas um suspiro pela minha dor,
uma oração murmurada e ausente
em doce canto,
o adeus sem a amargura das palavras,
sem gratidão pelas almas que choram,
as nossas,
a minha, sem te esqueça,
sem um só minuto que não te adore,
porque as almas que se amam não se esquecem,
não se ausentam, não dizem adeus.
A eternidade não é o instante de um suspiro,
passa o tempo
e a vida segue de outras formas,
palpitante
exuberante como o sangue e a chama
que existe sem ti.
Mas permaneces,
muito para além das horas.
*
No silêncio, enfim, debruça-se sobre o corpo inerte e beija-lhe a testa. As mãos enroladas num pano, limpam-se de culpas, lavam a consciência. Veste o casaco, demoradamente, e abandona a arma em descanso sobre a mesa, antes de sair pela porta já aberta. Sorriu. Guardei-a só para mim.
Daniel Bayesha
Vento Fugitivo
Move-se em café arrefecido
Uma certa tristeza de ser urbano,
Em cativeiro,
Um vento fugitivo, em vermelho vivo,
Sem o sabor da manhã ,
Apenas com a luz que atravessa o ar,
Morta há muito tempo, no abismo
Das tardes de outono sem cor,
Invernos de silêncio à noite.
E o café evapora-se sem deixar cheiro
Consumindo-se no escuro cinzento e sujo.
Onde não chove,
O céu, espelho da cidade que não termina
Chora água de ferro, dura,
Apenas transparente na minha mão
Estendida, saindo das arcadas.
Daniel Bayesha
Move-se em café arrefecido
Uma certa tristeza de ser urbano,
Em cativeiro,
Um vento fugitivo, em vermelho vivo,
Sem o sabor da manhã ,
Apenas com a luz que atravessa o ar,
Morta há muito tempo, no abismo
Das tardes de outono sem cor,
Invernos de silêncio à noite.
E o café evapora-se sem deixar cheiro
Consumindo-se no escuro cinzento e sujo.
Onde não chove,
O céu, espelho da cidade que não termina
Chora água de ferro, dura,
Apenas transparente na minha mão
Estendida, saindo das arcadas.
Daniel Bayesha
sexta-feira, novembro 21, 2003
Perdidos
A maresia de Setembro faz-me bem. Arrefece o espírito, quente e inquieto, muito subtilmente, sem molhar. O mar no início do Outono, revolto e furioso, escuro e misterioso, faz-me arrepiar perante tamanha demonstração de poder e magnitude de uma beleza serena. Se existisse um lugar de refúgio que pudesse chamar meu, seria um qualquer junto do mar.
Ao fundo, sem distinção, mar, céu e chuva recortados por raios e ecos que racham o silêncio do horizonte. As nuvens passam depressa, espalham-se à passagem, unem o este e o oeste, anunciam que não tardará a pingar. Não tenho abrigo.
Não sei há quanto tempo venho a esta praia, escondida, batida pela tempestade, agreste e selvagem, nem quanto tempo levo a perceber este sabor, a entender este ruído. Poderia ter nascido aqui, ter sido outra coisa em outra vida, um grão de areia, uma concha, ou uma duna feita grãos de areia unidos na solidão de nada serem uns aos outros, além de serem todos iguais na forma. Uma duna movendo-se lentamente ao longo da costa, ora crescendo, ora alongando, vendo as plantas crescendo e morrendo, acostumando-me à ausência de eternidade. Facilmente compreenderia que quem não se desilude é porque não ama e não ama para não se desiludir. Tudo o que fizesse perder-se-ia no ar, como se pertencesse a uma qualquer e pretensa ordem natural das coisas.
Sigo o caminho, olhando os carris, evitando a madeira podre, os ramos secos. O vento corre na areia, levanta as folhas secas. De um lado o mar, do outro as arribas, o sol não tarda a desaparecer, para lá da vista, depois do horizonte. O barulho das ondas diminui, distancia-se, as gaivotas deixam marcas pequenas na beira-mar. Pescadores contemplam o mar, já cansados, enquanto crianças brincam com os peixes deixados na beira da rede. Deixo que anoiteça, que o sol se consuma, lindo, sentir o frio da noite, o arrepio do vento, a areia fresca.
Trouxe-te aqui uma vez. Se debaixo daquela lua, as sombras me podiam enganar, o sentido que o horizonte tinha não podia esconder a simplicidade de uma emoção. Se no escuro, apenas o medo se mostrava, foi na penumbra que me alheei, sem pensar ou a pensar que não o deveria fazer, em que a única referência é o barulho do mar, um eco desconcertante, reconfortante, assustador. Tão assustador como deixar a areia correr entre os dedos, que acaba por se perder no mar. Como se tu, estivesses na minha frente, não por acaso, não por medo, mas porque assim seria.
E isso agora dá-me medo. A praia está deserta, e eu…. Eu, estou aqui, deixando areia escapar-se por entre os dedos. E porque, não só tu, mas outros também não estão.
Perder-se alguém é muito triste. Pior do que se tivesse morrido. Somos obrigados a ver todos os dias, nos mesmos sítios que eram nossos, a alma viva de quem já não nos diz nada. Perder amigos é penoso, mas vários no mesmo dia tem algo de tão dilacerante que chega quase a ser indolor. Perdem-se e não se trocam como outros elementos do nosso plano emocional.
Pior ainda é termos consciência de que se entra num caminho sem retorno, por nossa própria imposição e voltar atrás não é alternativa, embora, no fundo, nos apetecesse. Mas não queremos, e eu, irritado porque tenha a plena consciência que luto contra caminhos que outros escolheram conscientemente, demasiados ofuscados com o seu horizonte. ..
Fico só na praia, esperando os relâmpagos que o céu escuro prenuncia.
A maresia de Setembro faz-me bem. Arrefece o espírito, quente e inquieto, muito subtilmente, sem molhar. O mar no início do Outono, revolto e furioso, escuro e misterioso, faz-me arrepiar perante tamanha demonstração de poder e magnitude de uma beleza serena. Se existisse um lugar de refúgio que pudesse chamar meu, seria um qualquer junto do mar.
Ao fundo, sem distinção, mar, céu e chuva recortados por raios e ecos que racham o silêncio do horizonte. As nuvens passam depressa, espalham-se à passagem, unem o este e o oeste, anunciam que não tardará a pingar. Não tenho abrigo.
Não sei há quanto tempo venho a esta praia, escondida, batida pela tempestade, agreste e selvagem, nem quanto tempo levo a perceber este sabor, a entender este ruído. Poderia ter nascido aqui, ter sido outra coisa em outra vida, um grão de areia, uma concha, ou uma duna feita grãos de areia unidos na solidão de nada serem uns aos outros, além de serem todos iguais na forma. Uma duna movendo-se lentamente ao longo da costa, ora crescendo, ora alongando, vendo as plantas crescendo e morrendo, acostumando-me à ausência de eternidade. Facilmente compreenderia que quem não se desilude é porque não ama e não ama para não se desiludir. Tudo o que fizesse perder-se-ia no ar, como se pertencesse a uma qualquer e pretensa ordem natural das coisas.
Sigo o caminho, olhando os carris, evitando a madeira podre, os ramos secos. O vento corre na areia, levanta as folhas secas. De um lado o mar, do outro as arribas, o sol não tarda a desaparecer, para lá da vista, depois do horizonte. O barulho das ondas diminui, distancia-se, as gaivotas deixam marcas pequenas na beira-mar. Pescadores contemplam o mar, já cansados, enquanto crianças brincam com os peixes deixados na beira da rede. Deixo que anoiteça, que o sol se consuma, lindo, sentir o frio da noite, o arrepio do vento, a areia fresca.
Trouxe-te aqui uma vez. Se debaixo daquela lua, as sombras me podiam enganar, o sentido que o horizonte tinha não podia esconder a simplicidade de uma emoção. Se no escuro, apenas o medo se mostrava, foi na penumbra que me alheei, sem pensar ou a pensar que não o deveria fazer, em que a única referência é o barulho do mar, um eco desconcertante, reconfortante, assustador. Tão assustador como deixar a areia correr entre os dedos, que acaba por se perder no mar. Como se tu, estivesses na minha frente, não por acaso, não por medo, mas porque assim seria.
E isso agora dá-me medo. A praia está deserta, e eu…. Eu, estou aqui, deixando areia escapar-se por entre os dedos. E porque, não só tu, mas outros também não estão.
Perder-se alguém é muito triste. Pior do que se tivesse morrido. Somos obrigados a ver todos os dias, nos mesmos sítios que eram nossos, a alma viva de quem já não nos diz nada. Perder amigos é penoso, mas vários no mesmo dia tem algo de tão dilacerante que chega quase a ser indolor. Perdem-se e não se trocam como outros elementos do nosso plano emocional.
Pior ainda é termos consciência de que se entra num caminho sem retorno, por nossa própria imposição e voltar atrás não é alternativa, embora, no fundo, nos apetecesse. Mas não queremos, e eu, irritado porque tenha a plena consciência que luto contra caminhos que outros escolheram conscientemente, demasiados ofuscados com o seu horizonte. ..
Fico só na praia, esperando os relâmpagos que o céu escuro prenuncia.
Perfurando a tua ausência
A casa há muito que está fechada. Os passos há muito deixaram de se ouvir e gastar o soalho do alpendre, vestido de folhas secas e ramos abandonados do velho castanheiro que teima em crescer no jardim.
Encostado ao carro, espero uns momentos para admirar a ausência de vida no penhasco, para ganhar coragem e atravessar o o caminho de ciprestes até à clareira defronte da porta, que sei que não tentar sequer abrir.
Pedi-te para ficar e esperar fora dos domínios do que queria esquecer. Compreendeste, como sempre. E aceitaste.
O barulho da porta do carro assusta os pássaros nas árvores e ecoa pelas falésias até ao meu peito, batendo ao ritmo dos sapatos esmagando tufos de erva seca, da chave rodando na ferrugem do portão, denunciando que há muito teria sido deixado aberto.
O barulho do mar tornava-se perceptível e presente, ao fundo do pinhal frio atravessando a fina camisola de malha que trazia, não sei bem porquê e agora não me lembro, porque me esqueci que saberia que assim seria.
Desde há umas semanas que não conseguia dormir e a tua presença era demasiado constante para que pudesse levar uma vida normal, sem suores frios, sem ataques de ansiedade, sem pressa para saborear o meu café ao fim da tarde lá na avenida. Pensava que tudo tinha sido enterrado aqui, que aqui tudo tinha sido discutido e resolvido, que fechando a porta da nossa casa, deixava as minhas inseguranças seguramente presas longe do meu precário equilíbrio, continuamente devassado.
Passei ao largo alpendre, dos canteiros de rosas dominados por ervas e mato e procurei as escadas da falésia no meio das silvas, tentando lembrar-me do sítio onde nos vimos pela última vez, algumas semanas, meses atrás, já não sei.
Descobri a velha passadeira de madeira que nos levava ao miradouro e à casa de inverno, onde observávamos e admirávamos o forte mar de inverno, comendo a areia, deformando a praia. È o lugar que melhor me recordo de estar contigo, os dois a sós, a última, onde me pediste em casamento, eliminado de vez a minha vontade de amar em liberdade.
O cheiro a abandono era intenso e insuportável, mas garantia-me que ainda poderias lá estar, que permaneceste presa ao que era nosso, libertando-me para construir o que era meu, talvez obrigando-me a fugir para outra prisão, não sei. Queria apenas assegurar que a tua presença não me teria seguido para onde fui.
A porta estava aberta, mas ao fundo da sala, junto à lareira, estavas lá. Ainda estavas lá. Apesar de tudo sempre altiva e arrogante, mas continuavas como quando te deixei. Sofrendo, clamando perdão, aceitando os fracassos e a inglória luta para me destruir. Nada que que não se resolvesse perfurando o teu orgulho até à ausência de coração, o que, curiosamente, também sangra, dói e mata.
E matou na perfeição, sem falhar, como uma ciência exacta, embora de variáveis incertas e muito indeterminadas, quase improváveis, como o facto de continuares imóvel, na mesma posição, mãos sobre o peito, de camisa tingida, entre a lareira e o sofá, rodeada de bichos e decomposta sem tréguas. Provocaria enjoos, não fosse a satisfação de ver que o meu passado estava morto e decomposto, como que por magia.
A gasolina ainda estava ao teu lado, mas na altura não julguei mereceres a purificação da chama nem pretendia alertar os espíritos à solta na praia nesse Verão.
Receando ter de te ver aqui, ou todos os dias quando acordava ou dormia, lancei-te o fogo, não para te purificar mas para te castigar, para queimar qualquer possibilidade de dignidade que pudesse ainda residir em ti. Assim mesmo, sem perdão, tão facilmente como ignorar o que não sabemos.
Muito devagar, mãos nos bolsos, subi as escadas, atravessei o jardim sem olhar para a casa, fitando o carro ao fundo da alameda descuidada e vazia.
Ainda esperavas por mim, embora ja cá fora, fumando compulsivamente. Se bem te conhecia, não era o primeiro cigarro.
Beijei-te sofregamente, inesperadamente, mas gostaste. Sem medos, sem estigmas, apenas amando, abri-te a camisa, as calças, exibi-te a minha excitação, a minha vontade e encostei-te ao carro, amando-te, rindo, libertando gritos em liberdade, por longos momentos sem tempo.
Abriste-te os olhos e a tua boca desenhou as palavras que me voltariam a matar, a morrer por dentro, a desejar nunca ter amado.
- Queres casar comigo? Disseste chorando de alegria.
Foram as últimas palavras que ouvi da tua boca, antes de te ver desaparecer e soçobrar diante mim, horrorizada com o mal que me infligiste, com a tua crueldade fria e com a faca que perfurei a tua ausência de coração.
A casa há muito que está fechada. Os passos há muito deixaram de se ouvir e gastar o soalho do alpendre, vestido de folhas secas e ramos abandonados do velho castanheiro que teima em crescer no jardim.
Encostado ao carro, espero uns momentos para admirar a ausência de vida no penhasco, para ganhar coragem e atravessar o o caminho de ciprestes até à clareira defronte da porta, que sei que não tentar sequer abrir.
Pedi-te para ficar e esperar fora dos domínios do que queria esquecer. Compreendeste, como sempre. E aceitaste.
O barulho da porta do carro assusta os pássaros nas árvores e ecoa pelas falésias até ao meu peito, batendo ao ritmo dos sapatos esmagando tufos de erva seca, da chave rodando na ferrugem do portão, denunciando que há muito teria sido deixado aberto.
O barulho do mar tornava-se perceptível e presente, ao fundo do pinhal frio atravessando a fina camisola de malha que trazia, não sei bem porquê e agora não me lembro, porque me esqueci que saberia que assim seria.
Desde há umas semanas que não conseguia dormir e a tua presença era demasiado constante para que pudesse levar uma vida normal, sem suores frios, sem ataques de ansiedade, sem pressa para saborear o meu café ao fim da tarde lá na avenida. Pensava que tudo tinha sido enterrado aqui, que aqui tudo tinha sido discutido e resolvido, que fechando a porta da nossa casa, deixava as minhas inseguranças seguramente presas longe do meu precário equilíbrio, continuamente devassado.
Passei ao largo alpendre, dos canteiros de rosas dominados por ervas e mato e procurei as escadas da falésia no meio das silvas, tentando lembrar-me do sítio onde nos vimos pela última vez, algumas semanas, meses atrás, já não sei.
Descobri a velha passadeira de madeira que nos levava ao miradouro e à casa de inverno, onde observávamos e admirávamos o forte mar de inverno, comendo a areia, deformando a praia. È o lugar que melhor me recordo de estar contigo, os dois a sós, a última, onde me pediste em casamento, eliminado de vez a minha vontade de amar em liberdade.
O cheiro a abandono era intenso e insuportável, mas garantia-me que ainda poderias lá estar, que permaneceste presa ao que era nosso, libertando-me para construir o que era meu, talvez obrigando-me a fugir para outra prisão, não sei. Queria apenas assegurar que a tua presença não me teria seguido para onde fui.
A porta estava aberta, mas ao fundo da sala, junto à lareira, estavas lá. Ainda estavas lá. Apesar de tudo sempre altiva e arrogante, mas continuavas como quando te deixei. Sofrendo, clamando perdão, aceitando os fracassos e a inglória luta para me destruir. Nada que que não se resolvesse perfurando o teu orgulho até à ausência de coração, o que, curiosamente, também sangra, dói e mata.
E matou na perfeição, sem falhar, como uma ciência exacta, embora de variáveis incertas e muito indeterminadas, quase improváveis, como o facto de continuares imóvel, na mesma posição, mãos sobre o peito, de camisa tingida, entre a lareira e o sofá, rodeada de bichos e decomposta sem tréguas. Provocaria enjoos, não fosse a satisfação de ver que o meu passado estava morto e decomposto, como que por magia.
A gasolina ainda estava ao teu lado, mas na altura não julguei mereceres a purificação da chama nem pretendia alertar os espíritos à solta na praia nesse Verão.
Receando ter de te ver aqui, ou todos os dias quando acordava ou dormia, lancei-te o fogo, não para te purificar mas para te castigar, para queimar qualquer possibilidade de dignidade que pudesse ainda residir em ti. Assim mesmo, sem perdão, tão facilmente como ignorar o que não sabemos.
Muito devagar, mãos nos bolsos, subi as escadas, atravessei o jardim sem olhar para a casa, fitando o carro ao fundo da alameda descuidada e vazia.
Ainda esperavas por mim, embora ja cá fora, fumando compulsivamente. Se bem te conhecia, não era o primeiro cigarro.
Beijei-te sofregamente, inesperadamente, mas gostaste. Sem medos, sem estigmas, apenas amando, abri-te a camisa, as calças, exibi-te a minha excitação, a minha vontade e encostei-te ao carro, amando-te, rindo, libertando gritos em liberdade, por longos momentos sem tempo.
Abriste-te os olhos e a tua boca desenhou as palavras que me voltariam a matar, a morrer por dentro, a desejar nunca ter amado.
- Queres casar comigo? Disseste chorando de alegria.
Foram as últimas palavras que ouvi da tua boca, antes de te ver desaparecer e soçobrar diante mim, horrorizada com o mal que me infligiste, com a tua crueldade fria e com a faca que perfurei a tua ausência de coração.
o sopro
Sonhos e estilhaços mentindo,
Ferindo e fitando a inquietação,
Esvaídos em medo e a angústia.
A espera dilacera e antecipa,
Contamina por partes o sopro,
De raiva, rancor, medo.
A morte ribomba, atordoa, impõe-se,
Os tambores fraquejam as preces,
Observam o inevitável,
Com escárnio e desprezo
Pelo suspiro, o último,
Sem fôlego, sem razões.
Sonhos, ao arrepio de vento e água,
Molhando, escorrendo, tocando,
Risos, sem sombra nem recanto escondido,
Clareando a penumbra subterrânea da ordem,
Imposta, por momentos esquecida,
Dolorosa percepção assassina da vingança,
Sádico fervor, ódio cortante,
Devorando entranhas
Expostas, sem ventre nem esconderijo.
A terra, em sangue, suplica,
Estranha o incómodo, rogando,
Abrindo-se em páginas soltas,
Indicando o caminho de sulcos e pedras.
O retorno, respirar acima da água,
A marcha, com ódio, desespero,
A demência da putrefacta carne amada,
Aroma de jasmim em flor
Queimando os olhos e ardor,
De quem se curva e turva.
Rasga o peito, beija a morte, procura o sopro,
Fugindo, sentindo
O ar, a água correndo sobre as mãos,
Tingindo de rubro, lágrimas e saliva,
Os olhos mudos e quedos
Como sopros e uivos de corações sem alma.
Sonhos e estilhaços mentindo,
Ferindo e fitando a inquietação,
Esvaídos em medo e a angústia.
A espera dilacera e antecipa,
Contamina por partes o sopro,
De raiva, rancor, medo.
A morte ribomba, atordoa, impõe-se,
Os tambores fraquejam as preces,
Observam o inevitável,
Com escárnio e desprezo
Pelo suspiro, o último,
Sem fôlego, sem razões.
Sonhos, ao arrepio de vento e água,
Molhando, escorrendo, tocando,
Risos, sem sombra nem recanto escondido,
Clareando a penumbra subterrânea da ordem,
Imposta, por momentos esquecida,
Dolorosa percepção assassina da vingança,
Sádico fervor, ódio cortante,
Devorando entranhas
Expostas, sem ventre nem esconderijo.
A terra, em sangue, suplica,
Estranha o incómodo, rogando,
Abrindo-se em páginas soltas,
Indicando o caminho de sulcos e pedras.
O retorno, respirar acima da água,
A marcha, com ódio, desespero,
A demência da putrefacta carne amada,
Aroma de jasmim em flor
Queimando os olhos e ardor,
De quem se curva e turva.
Rasga o peito, beija a morte, procura o sopro,
Fugindo, sentindo
O ar, a água correndo sobre as mãos,
Tingindo de rubro, lágrimas e saliva,
Os olhos mudos e quedos
Como sopros e uivos de corações sem alma.
morremos
Mais um dia. Sempre o mesmo, sempre o mesmo quarto, as mesmas pessoas, às mesmas horas, dando-me as mesmas coisas, com as mesmas cores, os mesmos sabores, dizendo-me o mesmo que ontem. No corredor, as pessoas habituais, fazendo gestos dementes, com quem não se pode conversar, por dizerem sempre o mesmo.
As paredes iguais, brancas, um branco higiénico e maçador, monótono, reflectindo a mínima luz, todo o dia e noite. Só o pôr-do-sol nunca mais vi, por ser atrás das árvores, e não me deixarem contornar o edifício. Já tentei subir às árvores, mas valeu-me dois dias em clausura no quarto, num completo afogamento em medicamentos.
O jardim, nada tem de diferente dos outros que vejo para lá das grades. É apenas o que medeia o meu quarto da avenida, depois das grades. Fascinante e intrigante, um mundo de pessoas, para lá e para cá, cada uma na sua própria vida, atarefadas ou a passear, correndo, sempre correndo, não se sabe bem para quê. Algumas já conheço, por estarem todas as manhãs na paragem do autocarro. Espreito-as por entre as folhas das sebes, sem que elas me vejam. Sei quando têm roupa nova, quando estão tristes, quando têm mais pressa. Ás vezes gostaria de falar com elas, mas tenho medo. A avenida é confusa, barulhenta, selvagem. Assim que penso em sair, imediatamente desisto e volto para o meu quarto.
Depois, é sempre o mesmo. Escrevo. Escrevo compulsivamente, sem parar. Assim posso abstrair-me desta monotonia asfixiante e aterradora, pois não consigo viver sem ela. E por me ser tão essencial acredito que se parar ou sair lá para fora, poderei morrer fulminantemente. Sinto que devo escrever sobre tudo o que possa apreender nos meus breves instantes de paz. Não suporto ver as folhas brancas. Se começo numa página, rapidamente cubro-a, da primeira à ultima página, margem esquerda à direita, inferior à superior.
Algumas delas foram-me tiradas. Eu sei. As enfermeiras e alguns médicos rasgaram páginas. Não para ler. Para rabiscarem nos intervalos para o lanche.
Escrevo e falo com as pessoas que saem da minha cabeça. À noite falo com as pessoas que vejo todos os dias, mas que há noite não estão na paragem. Mas a essa hora posso falar à vontade, sobre tudo, sem ninguém interromper.
Há uma enfermeira que fala comigo, de um modo diferente das outras. De noite, ela entra no meu quarto e, enquanto finjo dormir, ela afaga-me o cabelo, fala de um modo doce, tranquiliza-me. Quando tenho pesadelos, ela aparece imediatamente, conversa comigo. Quando tenho a cabeça cheia, parecendo que vai rebentar, falo-lhe dos meus pensamentos, do que me atormenta, mas que não consigo exprimir de forma alguma. Choro por nada, tenho ataques de ansiedade, por nada. Penso em perguntar-lhe porque estou naquele quarto. Mas desisto. Tenho medo que me responda que já não é necessário, que já posso sair, que já posso conhecer a Avenida e falar com as pessoas que vejo todos os dias. E tenho medo. E calo-me.
Ela parece preocupar-se apenas comigo. Reparei que raramente fala com as outras pessoas, as outras que passam nos corredores compridos, com olhares vazios, sempre olhando para o fundo, nunca para nós.
Algumas noites, não conseguia dormir e andava de um lado para o outro no quarto, perdendo os passos no eco do corredor. Os medicamentos não faziam efeito. Continuava a fingir que dormia. Tinha medo que me mandassem embora, que a enfermeira não mais conversasse comigo.
Perdia noites inteiras à espera que o dia viesse, com medo de adormecer, com medo de sonhar com coisas sem sentido. Tinha medo de falar sobre eles, tinha medo de delirar e que me diagnosticassem algo próximo da demência. Isso significaria que me poderiam prender naquele quarto horrível e eu queria sentir que estava ali porque queria, enquanto me sentisse bem, enquanto não perdesse este medo irracional ao exterior.
Mas naquela noite, havia mais ruído do que o habitual. Ouviam-se mais vozes, muitas, sobrepostas. Espreitei pela janela e reparei, por entre as folhas e ramos das árvores, luzes e gente, falando alto, rindo, cantando. Vinham do exterior, da avenida, para lá das grades. Abri a porta com cuidado, para evitar os rangidos, pé ante pé, percorri o corredor, interminável e vazio até à saída. Não havia ninguém.
Saí para o jardim. Estava húmido e caíam algumas gotas dos beirais e das árvores. Os candeeiros continuavam avariados, pelo que consegui chegar às grades sem que ninguém me visse, não obstante ter tropeçado nos vários canteiros que encontrei pelo caminho. Afastei as sebes e espreitei pelas grades.
Por entre o silêncio que se instalou, apenas uma pessoa virou a cabeça para as grades onde eu estava. Não identifiquei quem olhava, mas quem o fazia sabia de certo quem eu era. À medida que se aproximava, senti uma ansiedade anormal. Comecei a pensar a uma velocidade alucinante.
Reconheci. Não queria admitir, mas reconheci quem se dirigia a mim. Já não me controlava, voltar para trás e fugir não era solução, o meu quarto branco e monótono já não servia de abrigo, já não me protegia dos meus medos, da minha falsa segurança, que se espalhava no chão como um colar de pérolas desfeito.
Como se a minha vida acontecesse naquele momento, como se tudo se resumisse a breve instantes, nos mesmos em que revisitei a minha vida, os meus sonhos.
Quanto mais se aproximava, sentia que não havia volta a dar, que estava à beira do precipício, decidindo enfrentar o que quer que fosse, ou cedesse à facilidade e saltasse.
Sinto uma mão aparando-me para descer das grades. A enfermeira. Trazia um casaco quente para me confortar, olhando-me com carinho e atenção.
Do outro lado. Tu.
Tu
Tu.
Tu.
Ali, sem falar, sem emitir um som, sem que eu pudesse ouvir o teu coração bater, depressa ou devagar. Esqueci-me do teu timbre de voz, dos teus risos, dos teus movimentos. O que queríamos falar, o que eu não dizia, mas gritava por dentro, com todas as minhas forças até à exaustão. Tremi, de frio, de qualquer coisa. Meti a mão no bolso. Respirei fundo. Tentei ouvir o meu coração.
Nada.
Deixei de ter frio.
Nada.
Morri.
Deixei de ouvir os aplausos. As vozes desvaneceram-se lentamente até não as ouvir mais. Mexias os lábios mas deles não percebi o mínimo som, uma única palavra.
Estendeste os braços por entre as grades, tentando alcançar-me, mas sem sequer senti algum toque, por mais leve que fosse. Morri. Naqueles breves mas intermináveis momentos em que me tentava aperceber do que se passava, enquanto a minha vida corria vertiginosamente em frente aos meus olhos. Já nada importava, já nada sentia, já nada queria, como se nunca tivesse pensado nisso.
Agarrei-te na mão, puxei-te contra as grades, e enquanto te segredava ao ouvido “ Tu não existes”, espetei a faca que roubara na cozinha, no teu peito.
Como se o tempo tivesse parado, como numa dança, apercebi-me dos teus pormenores, da forma como cada parte do teu corpo se moveu. Os olhos abertos, falando, a boca semicerrada, o corpo girando graciosamente sobre si mesmo. As mãos no peito, perdendo a segurança, enquanto tentava segurar um jorro de sangue, que empapava a roupa, salpicava o passeio. Se alguma coisas querias dizer, ficou contigo, enterrada no teu peito, com a minha faca. Não queria ficar com mais nada teu, nada que me fizesse pensar em viver com esperança de que tu aparecesses e me dissesses ou desses algo.
A enfermeira largou-me. Não gritou, não se moveu, não disse nada. Simplesmente fitou-me por segundos, observando-me surpreendida.
Depois disso o habitual. Um corpo no chão, sem vida, pedindo atenção, pessoas e mais pessoas correndo como loucas, sem saberem ao certo o que fazer, comentando, dando largas à imaginação, inserindo na sua vida sem vida, um episódio grotesco mas excitante. E eu.... Eu saí calmamente para a avenida. Já não me assusta. Morri e agora tudo o que se pudesse passar, não passaria por mim.
P.S: Recebi hoje a notícia de que foste enterrado no cemitério do Alto de S. João. A enfermeira disse que foi uma cerimónia linda, com muita gente, vieram pessoas de Barcelona, que estavam todos vestidos de preto, que lançaram muitas flores sobre o teu caixão, não obstante os coveiros terem tido imensas dificuldades em prosseguir com a descida à terra do teu corpo, uma vez que chovia copiosamente e a cova encheu-se rapidamente de água e lama e pareceu-lhes mal afogar uma pessoa morta. No entanto não foi vergonhoso, pois todos fugiram a abrigar-se da chuva e ninguém viu o insólito acontecimento.
Contando com o ciclo da água, é provável que a água onde te afogaram fosse proveniente do Tejo, pelo que, além da vista magnífica, ficaste bem junto do rio que tanto gostavas.
Acrescento que, como também morri, vou deixar de escrever, e já não me importo que as enfermeiras levem estas páginas. O facto de serem brancas e imaculadas já não me atormenta. Podem perfeitamente permanecer em branco.
Mais um dia. Sempre o mesmo, sempre o mesmo quarto, as mesmas pessoas, às mesmas horas, dando-me as mesmas coisas, com as mesmas cores, os mesmos sabores, dizendo-me o mesmo que ontem. No corredor, as pessoas habituais, fazendo gestos dementes, com quem não se pode conversar, por dizerem sempre o mesmo.
As paredes iguais, brancas, um branco higiénico e maçador, monótono, reflectindo a mínima luz, todo o dia e noite. Só o pôr-do-sol nunca mais vi, por ser atrás das árvores, e não me deixarem contornar o edifício. Já tentei subir às árvores, mas valeu-me dois dias em clausura no quarto, num completo afogamento em medicamentos.
O jardim, nada tem de diferente dos outros que vejo para lá das grades. É apenas o que medeia o meu quarto da avenida, depois das grades. Fascinante e intrigante, um mundo de pessoas, para lá e para cá, cada uma na sua própria vida, atarefadas ou a passear, correndo, sempre correndo, não se sabe bem para quê. Algumas já conheço, por estarem todas as manhãs na paragem do autocarro. Espreito-as por entre as folhas das sebes, sem que elas me vejam. Sei quando têm roupa nova, quando estão tristes, quando têm mais pressa. Ás vezes gostaria de falar com elas, mas tenho medo. A avenida é confusa, barulhenta, selvagem. Assim que penso em sair, imediatamente desisto e volto para o meu quarto.
Depois, é sempre o mesmo. Escrevo. Escrevo compulsivamente, sem parar. Assim posso abstrair-me desta monotonia asfixiante e aterradora, pois não consigo viver sem ela. E por me ser tão essencial acredito que se parar ou sair lá para fora, poderei morrer fulminantemente. Sinto que devo escrever sobre tudo o que possa apreender nos meus breves instantes de paz. Não suporto ver as folhas brancas. Se começo numa página, rapidamente cubro-a, da primeira à ultima página, margem esquerda à direita, inferior à superior.
Algumas delas foram-me tiradas. Eu sei. As enfermeiras e alguns médicos rasgaram páginas. Não para ler. Para rabiscarem nos intervalos para o lanche.
Escrevo e falo com as pessoas que saem da minha cabeça. À noite falo com as pessoas que vejo todos os dias, mas que há noite não estão na paragem. Mas a essa hora posso falar à vontade, sobre tudo, sem ninguém interromper.
Há uma enfermeira que fala comigo, de um modo diferente das outras. De noite, ela entra no meu quarto e, enquanto finjo dormir, ela afaga-me o cabelo, fala de um modo doce, tranquiliza-me. Quando tenho pesadelos, ela aparece imediatamente, conversa comigo. Quando tenho a cabeça cheia, parecendo que vai rebentar, falo-lhe dos meus pensamentos, do que me atormenta, mas que não consigo exprimir de forma alguma. Choro por nada, tenho ataques de ansiedade, por nada. Penso em perguntar-lhe porque estou naquele quarto. Mas desisto. Tenho medo que me responda que já não é necessário, que já posso sair, que já posso conhecer a Avenida e falar com as pessoas que vejo todos os dias. E tenho medo. E calo-me.
Ela parece preocupar-se apenas comigo. Reparei que raramente fala com as outras pessoas, as outras que passam nos corredores compridos, com olhares vazios, sempre olhando para o fundo, nunca para nós.
Algumas noites, não conseguia dormir e andava de um lado para o outro no quarto, perdendo os passos no eco do corredor. Os medicamentos não faziam efeito. Continuava a fingir que dormia. Tinha medo que me mandassem embora, que a enfermeira não mais conversasse comigo.
Perdia noites inteiras à espera que o dia viesse, com medo de adormecer, com medo de sonhar com coisas sem sentido. Tinha medo de falar sobre eles, tinha medo de delirar e que me diagnosticassem algo próximo da demência. Isso significaria que me poderiam prender naquele quarto horrível e eu queria sentir que estava ali porque queria, enquanto me sentisse bem, enquanto não perdesse este medo irracional ao exterior.
Mas naquela noite, havia mais ruído do que o habitual. Ouviam-se mais vozes, muitas, sobrepostas. Espreitei pela janela e reparei, por entre as folhas e ramos das árvores, luzes e gente, falando alto, rindo, cantando. Vinham do exterior, da avenida, para lá das grades. Abri a porta com cuidado, para evitar os rangidos, pé ante pé, percorri o corredor, interminável e vazio até à saída. Não havia ninguém.
Saí para o jardim. Estava húmido e caíam algumas gotas dos beirais e das árvores. Os candeeiros continuavam avariados, pelo que consegui chegar às grades sem que ninguém me visse, não obstante ter tropeçado nos vários canteiros que encontrei pelo caminho. Afastei as sebes e espreitei pelas grades.
Por entre o silêncio que se instalou, apenas uma pessoa virou a cabeça para as grades onde eu estava. Não identifiquei quem olhava, mas quem o fazia sabia de certo quem eu era. À medida que se aproximava, senti uma ansiedade anormal. Comecei a pensar a uma velocidade alucinante.
Reconheci. Não queria admitir, mas reconheci quem se dirigia a mim. Já não me controlava, voltar para trás e fugir não era solução, o meu quarto branco e monótono já não servia de abrigo, já não me protegia dos meus medos, da minha falsa segurança, que se espalhava no chão como um colar de pérolas desfeito.
Como se a minha vida acontecesse naquele momento, como se tudo se resumisse a breve instantes, nos mesmos em que revisitei a minha vida, os meus sonhos.
Quanto mais se aproximava, sentia que não havia volta a dar, que estava à beira do precipício, decidindo enfrentar o que quer que fosse, ou cedesse à facilidade e saltasse.
Sinto uma mão aparando-me para descer das grades. A enfermeira. Trazia um casaco quente para me confortar, olhando-me com carinho e atenção.
Do outro lado. Tu.
Tu
Tu.
Tu.
Ali, sem falar, sem emitir um som, sem que eu pudesse ouvir o teu coração bater, depressa ou devagar. Esqueci-me do teu timbre de voz, dos teus risos, dos teus movimentos. O que queríamos falar, o que eu não dizia, mas gritava por dentro, com todas as minhas forças até à exaustão. Tremi, de frio, de qualquer coisa. Meti a mão no bolso. Respirei fundo. Tentei ouvir o meu coração.
Nada.
Deixei de ter frio.
Nada.
Morri.
Deixei de ouvir os aplausos. As vozes desvaneceram-se lentamente até não as ouvir mais. Mexias os lábios mas deles não percebi o mínimo som, uma única palavra.
Estendeste os braços por entre as grades, tentando alcançar-me, mas sem sequer senti algum toque, por mais leve que fosse. Morri. Naqueles breves mas intermináveis momentos em que me tentava aperceber do que se passava, enquanto a minha vida corria vertiginosamente em frente aos meus olhos. Já nada importava, já nada sentia, já nada queria, como se nunca tivesse pensado nisso.
Agarrei-te na mão, puxei-te contra as grades, e enquanto te segredava ao ouvido “ Tu não existes”, espetei a faca que roubara na cozinha, no teu peito.
Como se o tempo tivesse parado, como numa dança, apercebi-me dos teus pormenores, da forma como cada parte do teu corpo se moveu. Os olhos abertos, falando, a boca semicerrada, o corpo girando graciosamente sobre si mesmo. As mãos no peito, perdendo a segurança, enquanto tentava segurar um jorro de sangue, que empapava a roupa, salpicava o passeio. Se alguma coisas querias dizer, ficou contigo, enterrada no teu peito, com a minha faca. Não queria ficar com mais nada teu, nada que me fizesse pensar em viver com esperança de que tu aparecesses e me dissesses ou desses algo.
A enfermeira largou-me. Não gritou, não se moveu, não disse nada. Simplesmente fitou-me por segundos, observando-me surpreendida.
Depois disso o habitual. Um corpo no chão, sem vida, pedindo atenção, pessoas e mais pessoas correndo como loucas, sem saberem ao certo o que fazer, comentando, dando largas à imaginação, inserindo na sua vida sem vida, um episódio grotesco mas excitante. E eu.... Eu saí calmamente para a avenida. Já não me assusta. Morri e agora tudo o que se pudesse passar, não passaria por mim.
P.S: Recebi hoje a notícia de que foste enterrado no cemitério do Alto de S. João. A enfermeira disse que foi uma cerimónia linda, com muita gente, vieram pessoas de Barcelona, que estavam todos vestidos de preto, que lançaram muitas flores sobre o teu caixão, não obstante os coveiros terem tido imensas dificuldades em prosseguir com a descida à terra do teu corpo, uma vez que chovia copiosamente e a cova encheu-se rapidamente de água e lama e pareceu-lhes mal afogar uma pessoa morta. No entanto não foi vergonhoso, pois todos fugiram a abrigar-se da chuva e ninguém viu o insólito acontecimento.
Contando com o ciclo da água, é provável que a água onde te afogaram fosse proveniente do Tejo, pelo que, além da vista magnífica, ficaste bem junto do rio que tanto gostavas.
Acrescento que, como também morri, vou deixar de escrever, e já não me importo que as enfermeiras levem estas páginas. O facto de serem brancas e imaculadas já não me atormenta. Podem perfeitamente permanecer em branco.
gato e rato
Em cubos, o açúcar desfaz-se como água ráz violeta no céu e ao fundo do corredor, vermelho - sem intenções óbvias – a divina cumplicidade de Deus e o Diabo num corpo só, rindo e corando, sem nesgas de penas ou provações, rebola-se numa aparente simplicidade e inocência da minha cama.
Do sofá de veludo azul apenas vejo uma nesga de pecado, aquela que me concedeste, afastando censuras por patente gozo depravado e voyer, que não me permitirias ter.
Por mim gatinharia pelo chão de madeira envernizada, duplicando no reflexo o meu divertimento, partindo para conquistar, novamente, esses domínios que insistes reclamar como inexplorados.
Dizes, sem levantar a voz, que não devo sair de onde estou. Aceno que sim, concordando, apesar de não me veres e continuo a beber o meu café, adivinhando o que não irás fazer.
A luz já não entra na janela, o relógio marca a mesma hora há cinco horas, numa em que arrancaste a ficha da parede, em cada dia desta semana, ultrapassando os limites do cansaço e da agonia do excesso do prazer, como casas de veludo e talha dourada, em cada ínfimo ponto que pudesse ser preenchido.
A chávena de café já transbordava, como eu, preenchido de antecipação, estupidamente, ou inteligentemente, como um jogo. Sabia perfeitamente onde tudo iria acabar, e lembrando como era, fazia por esquecer, extasiado por surpresas melhoradas, sempre que as mesmas aconteciam.
A musica apareceu, sem que desse por isso, mas encostou-se a mim como um gato, ronronando. “Quiereme” da Núria Fergó não era bem o que eu queria, mas nada como salero de fim de tarde num quinto andar da Sétima Colina.
“Quiereme, como se quiere por primeira vez, quiéreme, quiéreme para lo resto de la vida.......” e por aí adiante, percorrendo o corredor, sem parar, pisando tudo o que atiraste pelos curtos intervalos em que abrias a porta, rindo, sorrindo, provocando, com saídas esporádicas e rápidas, como um jogo de gato e rato que sempre gostei de jogar contigo, desprevenido, à mercê da tua militante loucura, nada virginal, sem tremores de primeira vez, onde eu podia ser rato e gato, conforme o momento e a disposição. Mas gostavas de ser gato de vestido curto, fosse em Paris, Praga ou Atenas, nunca em Nápoles, Nice ou Barcelona. O teu estranho e excitante fetiche da proximidade ao poder não nos deixava dormir numa cidade que não fosse capital, num quarto com janela com vista para o poder.
Fechada no quarto, matando-me de antecipação, sabias que esperaria o tempo eu fosse preciso, sabias que não eram perdidas as horas de preliminares, em que, invariavelmente, chegarias sem que eu ouvisse, tirando-me o cigarro da boca, fechando a janela sobre o Palácio de S. Bento, já iluminado.
Em cubos, o açúcar desfaz-se como água ráz violeta no céu e ao fundo do corredor, vermelho - sem intenções óbvias – a divina cumplicidade de Deus e o Diabo num corpo só, rindo e corando, sem nesgas de penas ou provações, rebola-se numa aparente simplicidade e inocência da minha cama.
Do sofá de veludo azul apenas vejo uma nesga de pecado, aquela que me concedeste, afastando censuras por patente gozo depravado e voyer, que não me permitirias ter.
Por mim gatinharia pelo chão de madeira envernizada, duplicando no reflexo o meu divertimento, partindo para conquistar, novamente, esses domínios que insistes reclamar como inexplorados.
Dizes, sem levantar a voz, que não devo sair de onde estou. Aceno que sim, concordando, apesar de não me veres e continuo a beber o meu café, adivinhando o que não irás fazer.
A luz já não entra na janela, o relógio marca a mesma hora há cinco horas, numa em que arrancaste a ficha da parede, em cada dia desta semana, ultrapassando os limites do cansaço e da agonia do excesso do prazer, como casas de veludo e talha dourada, em cada ínfimo ponto que pudesse ser preenchido.
A chávena de café já transbordava, como eu, preenchido de antecipação, estupidamente, ou inteligentemente, como um jogo. Sabia perfeitamente onde tudo iria acabar, e lembrando como era, fazia por esquecer, extasiado por surpresas melhoradas, sempre que as mesmas aconteciam.
A musica apareceu, sem que desse por isso, mas encostou-se a mim como um gato, ronronando. “Quiereme” da Núria Fergó não era bem o que eu queria, mas nada como salero de fim de tarde num quinto andar da Sétima Colina.
“Quiereme, como se quiere por primeira vez, quiéreme, quiéreme para lo resto de la vida.......” e por aí adiante, percorrendo o corredor, sem parar, pisando tudo o que atiraste pelos curtos intervalos em que abrias a porta, rindo, sorrindo, provocando, com saídas esporádicas e rápidas, como um jogo de gato e rato que sempre gostei de jogar contigo, desprevenido, à mercê da tua militante loucura, nada virginal, sem tremores de primeira vez, onde eu podia ser rato e gato, conforme o momento e a disposição. Mas gostavas de ser gato de vestido curto, fosse em Paris, Praga ou Atenas, nunca em Nápoles, Nice ou Barcelona. O teu estranho e excitante fetiche da proximidade ao poder não nos deixava dormir numa cidade que não fosse capital, num quarto com janela com vista para o poder.
Fechada no quarto, matando-me de antecipação, sabias que esperaria o tempo eu fosse preciso, sabias que não eram perdidas as horas de preliminares, em que, invariavelmente, chegarias sem que eu ouvisse, tirando-me o cigarro da boca, fechando a janela sobre o Palácio de S. Bento, já iluminado.
Ao fim de cada noite
Ao fim de cada noite era outra pessoa que cruzava as portas do teatro e se dirigia a mim. Era outra pessoa que me dava o mesmo beijo todas noites, naquela rua estreita e corrida a vento, que adormecia com o passar das horas até ao silêncio possível da cidade. Era por outras que perdia a conta aos cigarros e às pessoas que trazias contigo, todas as noites, em ti, e não sabia bem explicar ou esclarecer as minhas dúvidas quanto à aceitação ou recusa da existência delas na minha vida.
Não vivíamos sós. O 4.º andar da Rua da Prata era abrigo para muitas penadas de escrita, tinta sacramentada no papel desvendando dramas difíceis de suportar e impossíveis de controlar em quatro meras divisões, num único espaço, numa única pessoa. Estavam lá a toda a hora, falavam, cantavam, gritavam, beijavam-me, faziam amor comigo, sexo, sobrepunham-se ao rumor do trânsito nas ruas. Mais presentes e pressentidas que fantasmas, arrastavam os dias como se fosse natural que tu fosses elas.
No dia em que peguei nos teus papéis e os atirei pela janela, não estavas lá. Nem hoje sei. Não estarias só. Estarias demasiado enebriado com tanto conhecimento, tanta experiência e pensamento numa só pessoa que te esqueceste que eras só uma, tu, só com tanta demência, louca por tanta oportunidade, viver de uma só vez todas as emoções de uma vida. A tua sede de viver a representação atingiu contornos para além do imaginável. Passaram a ocupar todo o teu espaço, sem margem para perceberes, na realidade, a existência de uma realidade.
Noutra altura rasgaria as tuas vozes, as tua caras, com pressa de as não ver ou ouvir, a cada instante, a cada interminável segundo. Naquele dia, reuni cada um deles, os teus papéis espalhados por cada canto da casa, como que vigiando, como que deixando companhia para a minha solidão forçada e juntei-os num enorme monte, metodicamente empilhado. Abri a janela e, um a um, tive o prazer de ver voar cada um deles, desde a janela à rua, ao rio, sendo definitivamente esquecidos em outros, mais banais, no chão, sujos e amarrotados. Podia jurar, que mesmo assim, os ouvi rir.
Soubeste do sucedido porque voltaste mais cedo e assististe ao meu deleite indisfarçável. Não me apercebi da tua reacção nem da tua presença.
Não voltarias. Estarias mais dois meses em cena, no teatro ou em qualquer rua batida pelo vento, acabando de te destruir e esquecer nas personagens que promoveste, criaste e levaste a viver contigo, anulando-te irremediavelmente.
Dos teus papéis, guardei apenas dois. Duas poesias escritas há não sei quanto tempo, quando ainda eras tu, representando a tua vida e a imagem que eu tinha de ti, quando vivias comigo. Só nós dois, ao fim de cada dia.
Ao fim de cada noite era outra pessoa que cruzava as portas do teatro e se dirigia a mim. Era outra pessoa que me dava o mesmo beijo todas noites, naquela rua estreita e corrida a vento, que adormecia com o passar das horas até ao silêncio possível da cidade. Era por outras que perdia a conta aos cigarros e às pessoas que trazias contigo, todas as noites, em ti, e não sabia bem explicar ou esclarecer as minhas dúvidas quanto à aceitação ou recusa da existência delas na minha vida.
Não vivíamos sós. O 4.º andar da Rua da Prata era abrigo para muitas penadas de escrita, tinta sacramentada no papel desvendando dramas difíceis de suportar e impossíveis de controlar em quatro meras divisões, num único espaço, numa única pessoa. Estavam lá a toda a hora, falavam, cantavam, gritavam, beijavam-me, faziam amor comigo, sexo, sobrepunham-se ao rumor do trânsito nas ruas. Mais presentes e pressentidas que fantasmas, arrastavam os dias como se fosse natural que tu fosses elas.
No dia em que peguei nos teus papéis e os atirei pela janela, não estavas lá. Nem hoje sei. Não estarias só. Estarias demasiado enebriado com tanto conhecimento, tanta experiência e pensamento numa só pessoa que te esqueceste que eras só uma, tu, só com tanta demência, louca por tanta oportunidade, viver de uma só vez todas as emoções de uma vida. A tua sede de viver a representação atingiu contornos para além do imaginável. Passaram a ocupar todo o teu espaço, sem margem para perceberes, na realidade, a existência de uma realidade.
Noutra altura rasgaria as tuas vozes, as tua caras, com pressa de as não ver ou ouvir, a cada instante, a cada interminável segundo. Naquele dia, reuni cada um deles, os teus papéis espalhados por cada canto da casa, como que vigiando, como que deixando companhia para a minha solidão forçada e juntei-os num enorme monte, metodicamente empilhado. Abri a janela e, um a um, tive o prazer de ver voar cada um deles, desde a janela à rua, ao rio, sendo definitivamente esquecidos em outros, mais banais, no chão, sujos e amarrotados. Podia jurar, que mesmo assim, os ouvi rir.
Soubeste do sucedido porque voltaste mais cedo e assististe ao meu deleite indisfarçável. Não me apercebi da tua reacção nem da tua presença.
Não voltarias. Estarias mais dois meses em cena, no teatro ou em qualquer rua batida pelo vento, acabando de te destruir e esquecer nas personagens que promoveste, criaste e levaste a viver contigo, anulando-te irremediavelmente.
Dos teus papéis, guardei apenas dois. Duas poesias escritas há não sei quanto tempo, quando ainda eras tu, representando a tua vida e a imagem que eu tinha de ti, quando vivias comigo. Só nós dois, ao fim de cada dia.
quarta-feira, novembro 19, 2003
Sobre a nossa cidade
O barulho dos carris despertou-me, finalmente, de um estado de apatia e sonolência, desde que deixei Barcelona e Madrid para trás.
Na confusão das malas na saída, a minha prendeu-se com a seguinte, de uma forma inexplicavelmente complicada, impossível de soltar. Recordei-me de Agosto nas Ramblas, tu e eu, como nunca, para sempre, desse por onde desse, quando prometemos nós em troca do mundo, por nada que nos separasse.
Acabei por chegar a um acordo, como sempre. Tive de partir a partir a pega da mala, nada de novo, para que tudo voltasse ao normal. E sem me conseguir conter, acabei a chorar, a ver os quadros das chegadas e partidas desfocados pelas lágrimas, sem ver a porta de saída, sem ver nada.
Não consegui fechar os olhos no táxi, pressentia os lugares, cada vez mais próximos, uma ansiedade que me rebentava o peito, de tão grande que era, que me dominava, impedia-me de pensar com razão, nas razões que me fizeram voltar, porque razão deixei Barcelona, porque motivos voltei a Lisboa, depois de tudo o que tive de fazer, deixar de fazer, omitir, mentir, desistir, só para perseguir um sonho, o nosso, contigo, noutra cidade, distante, mas não muito, diferente, mas não o suficiente.
Quase me esquecia de dizer que não era aquele o caminho, que era outro, que não ia para casa, a minha, que depois foi nossa, que agora não existia, a casa que vendi depois de lhe termos pegado fogo numa louca festa de despedida, muito bebida, muito inconsequente, muito nossa, ao som da música que agora mesmo passa no rádio do táxi.
Decidi sair na Baixa, na Rua da Conceição. Um eléctrico barrava-nos o caminho, preso num trânsito infernal, mas normal de tão habitual que era, como as tuas desculpas, as discussões por nada, que eram tudo e por tudo que não era nada. Mas ficavas tão bem, com cara quase a explodir, que ria sem parar. Como se fosse uma fuga à rotina que, forçadamente, querias que entrasse pela janela. E eu não percebi. Ou não quis....
Preferi fazer o caminho a pé até ao Hotel no Chiado, com a minha única mala. O resto ficou na Plaza de España, onde esperei que tivesses a decência de, pelo menos, me levar à estação, quanto mais não fosse para te veres livre de mim, para teres a certeza que me ia mesmo embora, como se me levassem de limousine para a forca, enquanto secretamente, clamava por misericórdia.
No passeio estreito, esbarrava em toda a gente, mas ainda tinha tempo para ver aquelas lojinhas antigas, onde nos cruzámos pela primeira vez, onde desesperei perante a hipótese de um amor não correspondido. Era também aqui que costumávamos comprar botões, tecidos, chapéus para os fatos de carnaval, onde tiraste as tuas primeiras fotografias.
Da última vez que cá viemos, já tínhamos decidido sair de Lisboa, crescer noutro sítio. Improvisámos uma festa de despedida, a mesma que terminou com a entrada fulgurante do corpo de bombeiros no apartamento, acabando com o que ainda não tinha ardido e com a sobremesa que ainda não tínhamos comido.
Cada loja era um ano que estávamos juntos, que crescemos, quantas festas fazíamos, apenas para comemorar o facto de estarmos juntos, a divertirmo-nos, quando cada ano era o nosso ano, quando cada ano parecia ser todo o tempo, como se fôssemos apresentados todos os dias, a nós mesmos.
A chapelaria. Nela percebi que não podia gostar de mais ninguém senão tu. Que no meio da multidão escolhia-te sem pestanejar, que por mais que provasse todos os chapéus, apenas um me assentava, como se tivesse sido feito para mim. Mas para ti, não era isso. Alguém disse que existia tanta beleza no mundo que sentia que não conseguia aguentar. Eras tu. E isso, mal ou bem estava para sempre naquela fotografia. Nós estamos nela.
Subi a rua, subi as escadas do hotel, tentando esconder-me, guardar o medo que tinha, vergonha de que a minha fraqueza se espelhasse cá fora.
Entrei no quarto, fechei a janela para a rua, deixei de ouvir a multidão, escutei o meu coração ecoar nas paredes nuas, brancas e lisas, diluindo-se lentamente na escuridão. Deixei apenas o candeeiro aceso.
Abri a mala e espalhei tudo, rasguei, baralhei e voltei a dar, tentei desembrulhar o novelo em que estavam feitos os meus pensamentos.
Olhei as fotografias, os papéis, tudo o que acabou por ficar de nós. O que escrevi para ti e não te dei, por achar que não existia nada que se comparasse ao que eu sentia, as fotografias que tiraste, só a pessoas que não nós, e que roubei da tua gaveta, por ser a única coisa que guardavas com carinho, por as amares mais do que a mim. Tirei por saber que estaria a tirar parte de ti.
Doía-me amar-te tanto, e lembrar-me de tudo o que não eras tu, consumir-me em quase loucura, porque eras quase o mundo, todo, e tudo o mais que eu imaginava, flutuando sobre a nossa cidade, tentando voar de mãos dadas.
Mas esqueci-me de ti, e eu, lembrança efémera, que ardeu contigo, consumidos em fogo ardente, avassalador. Vazios de tudo e cheios de nada, definhamos por momentos, intermináveis, tentando saber quem éramos, se sozinhos, se tocando o rio com as nossas mãos, limpando os salpicos com beijos.
Dei-te uma parte de mim em troca de uma parte de nada.
Chorei. Tive saudades da inocência irremediavelmente perdida.
E descendo o rio, não eras tu ao dobrar da esquina, era eu, nascendo naquele momento, renascendo de cinzas, já esquecidas e agora voando, com o vento,
sobre a cidade, como nós.
O barulho dos carris despertou-me, finalmente, de um estado de apatia e sonolência, desde que deixei Barcelona e Madrid para trás.
Na confusão das malas na saída, a minha prendeu-se com a seguinte, de uma forma inexplicavelmente complicada, impossível de soltar. Recordei-me de Agosto nas Ramblas, tu e eu, como nunca, para sempre, desse por onde desse, quando prometemos nós em troca do mundo, por nada que nos separasse.
Acabei por chegar a um acordo, como sempre. Tive de partir a partir a pega da mala, nada de novo, para que tudo voltasse ao normal. E sem me conseguir conter, acabei a chorar, a ver os quadros das chegadas e partidas desfocados pelas lágrimas, sem ver a porta de saída, sem ver nada.
Não consegui fechar os olhos no táxi, pressentia os lugares, cada vez mais próximos, uma ansiedade que me rebentava o peito, de tão grande que era, que me dominava, impedia-me de pensar com razão, nas razões que me fizeram voltar, porque razão deixei Barcelona, porque motivos voltei a Lisboa, depois de tudo o que tive de fazer, deixar de fazer, omitir, mentir, desistir, só para perseguir um sonho, o nosso, contigo, noutra cidade, distante, mas não muito, diferente, mas não o suficiente.
Quase me esquecia de dizer que não era aquele o caminho, que era outro, que não ia para casa, a minha, que depois foi nossa, que agora não existia, a casa que vendi depois de lhe termos pegado fogo numa louca festa de despedida, muito bebida, muito inconsequente, muito nossa, ao som da música que agora mesmo passa no rádio do táxi.
Decidi sair na Baixa, na Rua da Conceição. Um eléctrico barrava-nos o caminho, preso num trânsito infernal, mas normal de tão habitual que era, como as tuas desculpas, as discussões por nada, que eram tudo e por tudo que não era nada. Mas ficavas tão bem, com cara quase a explodir, que ria sem parar. Como se fosse uma fuga à rotina que, forçadamente, querias que entrasse pela janela. E eu não percebi. Ou não quis....
Preferi fazer o caminho a pé até ao Hotel no Chiado, com a minha única mala. O resto ficou na Plaza de España, onde esperei que tivesses a decência de, pelo menos, me levar à estação, quanto mais não fosse para te veres livre de mim, para teres a certeza que me ia mesmo embora, como se me levassem de limousine para a forca, enquanto secretamente, clamava por misericórdia.
No passeio estreito, esbarrava em toda a gente, mas ainda tinha tempo para ver aquelas lojinhas antigas, onde nos cruzámos pela primeira vez, onde desesperei perante a hipótese de um amor não correspondido. Era também aqui que costumávamos comprar botões, tecidos, chapéus para os fatos de carnaval, onde tiraste as tuas primeiras fotografias.
Da última vez que cá viemos, já tínhamos decidido sair de Lisboa, crescer noutro sítio. Improvisámos uma festa de despedida, a mesma que terminou com a entrada fulgurante do corpo de bombeiros no apartamento, acabando com o que ainda não tinha ardido e com a sobremesa que ainda não tínhamos comido.
Cada loja era um ano que estávamos juntos, que crescemos, quantas festas fazíamos, apenas para comemorar o facto de estarmos juntos, a divertirmo-nos, quando cada ano era o nosso ano, quando cada ano parecia ser todo o tempo, como se fôssemos apresentados todos os dias, a nós mesmos.
A chapelaria. Nela percebi que não podia gostar de mais ninguém senão tu. Que no meio da multidão escolhia-te sem pestanejar, que por mais que provasse todos os chapéus, apenas um me assentava, como se tivesse sido feito para mim. Mas para ti, não era isso. Alguém disse que existia tanta beleza no mundo que sentia que não conseguia aguentar. Eras tu. E isso, mal ou bem estava para sempre naquela fotografia. Nós estamos nela.
Subi a rua, subi as escadas do hotel, tentando esconder-me, guardar o medo que tinha, vergonha de que a minha fraqueza se espelhasse cá fora.
Entrei no quarto, fechei a janela para a rua, deixei de ouvir a multidão, escutei o meu coração ecoar nas paredes nuas, brancas e lisas, diluindo-se lentamente na escuridão. Deixei apenas o candeeiro aceso.
Abri a mala e espalhei tudo, rasguei, baralhei e voltei a dar, tentei desembrulhar o novelo em que estavam feitos os meus pensamentos.
Olhei as fotografias, os papéis, tudo o que acabou por ficar de nós. O que escrevi para ti e não te dei, por achar que não existia nada que se comparasse ao que eu sentia, as fotografias que tiraste, só a pessoas que não nós, e que roubei da tua gaveta, por ser a única coisa que guardavas com carinho, por as amares mais do que a mim. Tirei por saber que estaria a tirar parte de ti.
Doía-me amar-te tanto, e lembrar-me de tudo o que não eras tu, consumir-me em quase loucura, porque eras quase o mundo, todo, e tudo o mais que eu imaginava, flutuando sobre a nossa cidade, tentando voar de mãos dadas.
Mas esqueci-me de ti, e eu, lembrança efémera, que ardeu contigo, consumidos em fogo ardente, avassalador. Vazios de tudo e cheios de nada, definhamos por momentos, intermináveis, tentando saber quem éramos, se sozinhos, se tocando o rio com as nossas mãos, limpando os salpicos com beijos.
Dei-te uma parte de mim em troca de uma parte de nada.
Chorei. Tive saudades da inocência irremediavelmente perdida.
E descendo o rio, não eras tu ao dobrar da esquina, era eu, nascendo naquele momento, renascendo de cinzas, já esquecidas e agora voando, com o vento,
sobre a cidade, como nós.
Dança vencida
Entrei na sala de ensaios, pequena, mas muito luminosa e acolhedora, envolta numa pequena névoa de fumo. Á hora marcada as luzes apagaram-se, o burburinho foi diminuindo progressivamente até se instalar o silêncio absoluto e desconfortável pela espera. Uma luz vermelha acendeu, recortou o fumo e projectou-se no chão de madeira, por alguns minutos, como se de uma pequena chama se tratasse, acesa por si própria.
Um vulto mostrou-se, seguido de outro, e mais outro, alternadamente saindo da escuridão. Ondulavam como se acompanhassem o movimento da chama, como vários picos de luz numa fogueira. E tocavam-se, toques suaves e longos, como o fogo lambe a madeira, primeiro à superfície e depois, progressivamente até se confundirem com a matéria, ardendo. Como brasas que se soltam, separaram-se sem nunca se afastarem, fazendo parte do mesmo ser vivo, com identidade própria, em mutação permanente. Uma música suave, que não identifiquei, envolvia a sala, todos os presentes em fogo, que ora se mostrava, ora se escondia.
A pouco e pouco as formas revelavam-se. A pouco e pouco, as feridas abertas teimavam em não sarar, apesar do fogo que me consumia por dentro, que me devorava, como se de floresta virgem de sentimentos se tratasse. Várias mãos oscilavam, antes de tocarem nos rostos, no cabelo com uma determinação temerosa, como que admirando a pele, antes de a experimentarem. Vários corações batendo sincopadamente, ao mesmo ritmo, com a mesma excitação. A minha pele arrepiava-se com as outras. Sem vê-las, podia senti-las. Sem se tocarem, os corpos possuíam-se, apropriando-se a si próprios, queimando o chão.
O manto de fumo já envolvia sala. Libertavam-se silêncios, tocavam-se melodias. Chorava-se, ria-se, sentia-se. Trocavam-se olhares profanos, intenções carnais, mão seguras e decididas, movimentos distantes e quentes.
Todos se envolviam num tango, em corpos movidos pelo desejo, retidos na luta, no domínio, no carinho, no chão já gasto que quase nada reflectia. As cortinas eram a moldura da dança, vermelhas, de veludo, de dor e desejo, pecado carnal, capital.
Pararam corações aflitos, apagou-se coração deflagrado. Terminou a dança, acabou a luta. Não se deram por vencidos.
Fechei os olhos. Tentava desesperadamente controlar emoções que me esforçava por conter. Abri a porta e saí. Voei pelas escadas, tropeçando nas palavras que não saíam, turvando-me os olhos com água, sugando gotas de lucidez periclitante. Caí, no primeiro, no terceiro, em todos caíu qualquer coisa, das coisas que restaram, das coisas lindas que passaram, mas que acabaram por causa das coisas.
Chorei, sem respirar, sem pensar, apenas por doer, dor de nada, de vazio, de ferida a sangrar, de coração que se desfez. Doía tanto como se nada doesse, nada mais se perdesse, nada mais se quisesse. Calei gritos mudos, insuportavelmente repetidos na memória, sem tréguas, sem querer a paz.
Apenas me detive no fim do cais. Deixei-me cair. A chuva a molhar a cara, a ensopar a roupa, arrefecer a raiva, apagar o fogo.
Subi o corrimão, respirei o ar da noite, o rio. Céu escuro. Nem vislumbre de que vá mudar. Fechei os olhos e procurei sentir-me. Belisquei-me e nada. Nem arrepio nem dor, nem lágrima. Nada. Absolutamente nada.
Não resisti a mandar-te uma mensagem pelo telemóvel.
Entrei na sala de ensaios, pequena, mas muito luminosa e acolhedora, envolta numa pequena névoa de fumo. Á hora marcada as luzes apagaram-se, o burburinho foi diminuindo progressivamente até se instalar o silêncio absoluto e desconfortável pela espera. Uma luz vermelha acendeu, recortou o fumo e projectou-se no chão de madeira, por alguns minutos, como se de uma pequena chama se tratasse, acesa por si própria.
Um vulto mostrou-se, seguido de outro, e mais outro, alternadamente saindo da escuridão. Ondulavam como se acompanhassem o movimento da chama, como vários picos de luz numa fogueira. E tocavam-se, toques suaves e longos, como o fogo lambe a madeira, primeiro à superfície e depois, progressivamente até se confundirem com a matéria, ardendo. Como brasas que se soltam, separaram-se sem nunca se afastarem, fazendo parte do mesmo ser vivo, com identidade própria, em mutação permanente. Uma música suave, que não identifiquei, envolvia a sala, todos os presentes em fogo, que ora se mostrava, ora se escondia.
A pouco e pouco as formas revelavam-se. A pouco e pouco, as feridas abertas teimavam em não sarar, apesar do fogo que me consumia por dentro, que me devorava, como se de floresta virgem de sentimentos se tratasse. Várias mãos oscilavam, antes de tocarem nos rostos, no cabelo com uma determinação temerosa, como que admirando a pele, antes de a experimentarem. Vários corações batendo sincopadamente, ao mesmo ritmo, com a mesma excitação. A minha pele arrepiava-se com as outras. Sem vê-las, podia senti-las. Sem se tocarem, os corpos possuíam-se, apropriando-se a si próprios, queimando o chão.
O manto de fumo já envolvia sala. Libertavam-se silêncios, tocavam-se melodias. Chorava-se, ria-se, sentia-se. Trocavam-se olhares profanos, intenções carnais, mão seguras e decididas, movimentos distantes e quentes.
Todos se envolviam num tango, em corpos movidos pelo desejo, retidos na luta, no domínio, no carinho, no chão já gasto que quase nada reflectia. As cortinas eram a moldura da dança, vermelhas, de veludo, de dor e desejo, pecado carnal, capital.
Pararam corações aflitos, apagou-se coração deflagrado. Terminou a dança, acabou a luta. Não se deram por vencidos.
Fechei os olhos. Tentava desesperadamente controlar emoções que me esforçava por conter. Abri a porta e saí. Voei pelas escadas, tropeçando nas palavras que não saíam, turvando-me os olhos com água, sugando gotas de lucidez periclitante. Caí, no primeiro, no terceiro, em todos caíu qualquer coisa, das coisas que restaram, das coisas lindas que passaram, mas que acabaram por causa das coisas.
Chorei, sem respirar, sem pensar, apenas por doer, dor de nada, de vazio, de ferida a sangrar, de coração que se desfez. Doía tanto como se nada doesse, nada mais se perdesse, nada mais se quisesse. Calei gritos mudos, insuportavelmente repetidos na memória, sem tréguas, sem querer a paz.
Apenas me detive no fim do cais. Deixei-me cair. A chuva a molhar a cara, a ensopar a roupa, arrefecer a raiva, apagar o fogo.
Subi o corrimão, respirei o ar da noite, o rio. Céu escuro. Nem vislumbre de que vá mudar. Fechei os olhos e procurei sentir-me. Belisquei-me e nada. Nem arrepio nem dor, nem lágrima. Nada. Absolutamente nada.
Não resisti a mandar-te uma mensagem pelo telemóvel.
As regras
O inverno quase chegou. Os desejos arrefecem, mutam-se, esquecem as sombras e os bálsamos marítimos perdidos na contagem cíclica do tempo que se perde sem pensar. Na varanda do Lux. tu, de vermelho justo, braço estendido, alongando, percorrendo, afagando, o ferro e a pele descoberta, de tez escurecida pela luz, sem arrepio, como o caminho mais próximo que faço até ti. No interior, a cadeira escura, ao canto, na passagem para o exterior, encenado as gruas e as luzes do porto, observa bem quem passa por aqui, por ti. Brilhas mais, ofuscas, ris de quem se apaga e se perde. Ris, sem te rires como os outros, em leves movimentos, imperceptíveis, ronronando em algodão, tão leve, escondida e camuflada aos nossos olhos como aos dos outros, esta nossa vertiginosa corrida suicida, sede de adrenalina em estado puro, adocicadamente perigosa como cocaína. Este nosso entendimento que não entendemos.
O cigarro queima, cheiras a jasmim e a sexo, dos poros libertando-o, em doses de suor contadas em escala milimétrica. No teu pescoço.
Não há vergonha. Despudorada, insana, beijares aqui, com língua, percorrendo as tuas linhas, tremendo, de frio concerteza, que eu não me apaixono nem cedo a impulsos próprios da carne. Só ás vezes, muitas vezes, quase sempre, as vezes que te vejo assim. Tu.
Vozes e gente, barcos e carros correndo na margem, furando o torpor da quase luz e à vista, à primeira, é tudo igual. A noite engana e não é para nós, que não partilhamos egoísmos e excitações, as nossas. Não há mesas nem cadeiras, jarros nem quadros que possamos atirar ao canto, da parede ao chão, no meu tapete vermelho da sala onde te oiço gemer, sedenta de tudo, contorcendo-te na voragem das horas e dos limites que não temos e as regras que não cumprimos.
Não gosto tanto de ti e não gostas tanto de mim. Eu também não. Falas, ris, daquela forma imperceptível. Gozas da expressão e do adjectivo. O romance da prosa poética que é inventar o desejo, sem sentido e a fulminante e grosseira forma como nos agarramos ao instinto de copular por prazer, como nos defraudamos com Paris no cinema e escrevemos desprezando as regras de Al Berto e Saramago. Não são as nossas.
A varanda já é pequena e o táxi espera por nós. O chão da minha sala está livre, esperando por nós, por cinco minutos que seja, pedindo que não te apresses nem te acalmes. Afinal, a primeira regra é aceitar a incerteza e o fascínio.
A indomável satisfação de se ter o que não se tem.
O inverno quase chegou. Os desejos arrefecem, mutam-se, esquecem as sombras e os bálsamos marítimos perdidos na contagem cíclica do tempo que se perde sem pensar. Na varanda do Lux. tu, de vermelho justo, braço estendido, alongando, percorrendo, afagando, o ferro e a pele descoberta, de tez escurecida pela luz, sem arrepio, como o caminho mais próximo que faço até ti. No interior, a cadeira escura, ao canto, na passagem para o exterior, encenado as gruas e as luzes do porto, observa bem quem passa por aqui, por ti. Brilhas mais, ofuscas, ris de quem se apaga e se perde. Ris, sem te rires como os outros, em leves movimentos, imperceptíveis, ronronando em algodão, tão leve, escondida e camuflada aos nossos olhos como aos dos outros, esta nossa vertiginosa corrida suicida, sede de adrenalina em estado puro, adocicadamente perigosa como cocaína. Este nosso entendimento que não entendemos.
O cigarro queima, cheiras a jasmim e a sexo, dos poros libertando-o, em doses de suor contadas em escala milimétrica. No teu pescoço.
Não há vergonha. Despudorada, insana, beijares aqui, com língua, percorrendo as tuas linhas, tremendo, de frio concerteza, que eu não me apaixono nem cedo a impulsos próprios da carne. Só ás vezes, muitas vezes, quase sempre, as vezes que te vejo assim. Tu.
Vozes e gente, barcos e carros correndo na margem, furando o torpor da quase luz e à vista, à primeira, é tudo igual. A noite engana e não é para nós, que não partilhamos egoísmos e excitações, as nossas. Não há mesas nem cadeiras, jarros nem quadros que possamos atirar ao canto, da parede ao chão, no meu tapete vermelho da sala onde te oiço gemer, sedenta de tudo, contorcendo-te na voragem das horas e dos limites que não temos e as regras que não cumprimos.
Não gosto tanto de ti e não gostas tanto de mim. Eu também não. Falas, ris, daquela forma imperceptível. Gozas da expressão e do adjectivo. O romance da prosa poética que é inventar o desejo, sem sentido e a fulminante e grosseira forma como nos agarramos ao instinto de copular por prazer, como nos defraudamos com Paris no cinema e escrevemos desprezando as regras de Al Berto e Saramago. Não são as nossas.
A varanda já é pequena e o táxi espera por nós. O chão da minha sala está livre, esperando por nós, por cinco minutos que seja, pedindo que não te apresses nem te acalmes. Afinal, a primeira regra é aceitar a incerteza e o fascínio.
A indomável satisfação de se ter o que não se tem.
sexta-feira, novembro 14, 2003
As vozes em ti
Procuram as vozes em surdina, na lentidão da luz,
em madeira rara, esquecidas e quentes, descarnada,
amaciando, arrepiando o veludo azul,
incandescente, de intensidade crepuscular,
inteiramente inventado na monção de verão,
percorrendo e envolvendo as mãos, nas tuas, longe,
querendo, temendo, ansiando, antecipando,
rasgando a madrugada e fios de prata caídos sem glória, sem brilho,
volteando, toureando demónios ao amanhecer,
perseguidos, eles e nós, sem nada em comum,
os mesmos medos, debaixo da almofada, quente e suada,
gritando mais alto que a fita, com gravilha na imagem,
invejando as letras e a escrita, a preto, em papel brilhante,
melhor que o teu, rascunho de peça, de dança rangendo no soalho,
de tinta escorrendo, alagando, mortificando-se,
temendo o afogamento em ti, imprevisível, inevitável, insaciável,
um insolente urro em plenos pulmões,
sou eu, mostrando-te o que sei, sobejando, explodindo,
a fascinação, a excitação digna de exibição, carnal, erótica, diferente,
cumplicidades de ser tão urbano, embriagado pela criação,
movimentos e contemplação, viver como aparições,
a busca silenciosa nas sombras do mar, onde o sol não tem lugar,
os fugazes desenhos, os amores tristes e enebriados,
a mentira do sonho que acaba, mesmo ali, na rua de baixo,
tão perto como o mal que nos vigia, que nos atormenta, rodeia,
estremecendo num marulhar distante do fim do mundo,
temendo o fim da polifonia, devoradora, insaciável,
o esquecimento, a cegueira, a mudez da voz que há em ti.
Procuram as vozes em surdina, na lentidão da luz,
em madeira rara, esquecidas e quentes, descarnada,
amaciando, arrepiando o veludo azul,
incandescente, de intensidade crepuscular,
inteiramente inventado na monção de verão,
percorrendo e envolvendo as mãos, nas tuas, longe,
querendo, temendo, ansiando, antecipando,
rasgando a madrugada e fios de prata caídos sem glória, sem brilho,
volteando, toureando demónios ao amanhecer,
perseguidos, eles e nós, sem nada em comum,
os mesmos medos, debaixo da almofada, quente e suada,
gritando mais alto que a fita, com gravilha na imagem,
invejando as letras e a escrita, a preto, em papel brilhante,
melhor que o teu, rascunho de peça, de dança rangendo no soalho,
de tinta escorrendo, alagando, mortificando-se,
temendo o afogamento em ti, imprevisível, inevitável, insaciável,
um insolente urro em plenos pulmões,
sou eu, mostrando-te o que sei, sobejando, explodindo,
a fascinação, a excitação digna de exibição, carnal, erótica, diferente,
cumplicidades de ser tão urbano, embriagado pela criação,
movimentos e contemplação, viver como aparições,
a busca silenciosa nas sombras do mar, onde o sol não tem lugar,
os fugazes desenhos, os amores tristes e enebriados,
a mentira do sonho que acaba, mesmo ali, na rua de baixo,
tão perto como o mal que nos vigia, que nos atormenta, rodeia,
estremecendo num marulhar distante do fim do mundo,
temendo o fim da polifonia, devoradora, insaciável,
o esquecimento, a cegueira, a mudez da voz que há em ti.
segunda-feira, novembro 10, 2003
Vadio
O vadio sentado na cabeceira do sofá
Fumando cheiros de olhares em corpos,
Que deseja ardentemente, sem razão,
Porque sim, como não,
Degustando o fim de festa que se inicia
Rindo do despropósito alcoólico,
Das caneladas sujas e arrogantes
De quem nada sabe e morre,
Todos os dias, a ilusão definha, enfim.
O vadio reclama, e ri, e bebe,
Diverte-lhe a luxúria de viver, tenaz
O luxo de amar quem entender, vulgar
De escrever, a excitação
O espalhar a tinta em cada corpo relatado.
Confidencia-me o horror da calmaria surda
O calor do amor às escondidas e fugidio
Regado de suor e gemidos,
Ecos de uma Tundra distante
Segregando fluídos venenosos à hipocrisia.
As beatas comem a alcatifa, vorazes
Precipitam o abismo escancarado,
O fim, a quem o fogo se apaga.
- Sabes, já ninguém sabe ser vadio...
Digo que sim, que sei...
O vadio sentado na cabeceira do sofá
Fumando cheiros de olhares em corpos,
Que deseja ardentemente, sem razão,
Porque sim, como não,
Degustando o fim de festa que se inicia
Rindo do despropósito alcoólico,
Das caneladas sujas e arrogantes
De quem nada sabe e morre,
Todos os dias, a ilusão definha, enfim.
O vadio reclama, e ri, e bebe,
Diverte-lhe a luxúria de viver, tenaz
O luxo de amar quem entender, vulgar
De escrever, a excitação
O espalhar a tinta em cada corpo relatado.
Confidencia-me o horror da calmaria surda
O calor do amor às escondidas e fugidio
Regado de suor e gemidos,
Ecos de uma Tundra distante
Segregando fluídos venenosos à hipocrisia.
As beatas comem a alcatifa, vorazes
Precipitam o abismo escancarado,
O fim, a quem o fogo se apaga.
- Sabes, já ninguém sabe ser vadio...
Digo que sim, que sei...
Ingratidão dos últimos suspiros
Olhares ingénuos não queimam o reconfortante embalo da música
Dos algerozes inconsoláveis e da chuva rasgando todos os dias
Atormentados com a ingratidão dos últimos suspiros.
Andarilhos meio perdidos, ébrios
Transmutados em libidinosa errância
Filtrando pelo tempo o suave prazer de sentir a musica como sua
Sem se importar com isso e com nada, antecipando
Dizer que não à estranheza de alguém
Admirando o crepúsculo do juízo final por nós iniciado
Respirar o ar conturbado dos jardins quando não havia árvores
Onde a beleza é desculpa para esperar
Para ver o que acontece e lastimar as vozes, os gestos
Perdidos, distorcidos, recriados, transgénicos
Diligentes criações psicóticas em parceria
Exalando prenúncios de mentira e imitada realidade.
Pouco importa onde estou, mas tu sabes
Estranho-te e esqueço-te por aqui ter estado
Em consciência sabendo que não existes
Que ris e floresces de modos artificiais
Incolores e inodoros para mim.
Olhares ingénuos não queimam o reconfortante embalo da música
Dos algerozes inconsoláveis e da chuva rasgando todos os dias
Atormentados com a ingratidão dos últimos suspiros.
Andarilhos meio perdidos, ébrios
Transmutados em libidinosa errância
Filtrando pelo tempo o suave prazer de sentir a musica como sua
Sem se importar com isso e com nada, antecipando
Dizer que não à estranheza de alguém
Admirando o crepúsculo do juízo final por nós iniciado
Respirar o ar conturbado dos jardins quando não havia árvores
Onde a beleza é desculpa para esperar
Para ver o que acontece e lastimar as vozes, os gestos
Perdidos, distorcidos, recriados, transgénicos
Diligentes criações psicóticas em parceria
Exalando prenúncios de mentira e imitada realidade.
Pouco importa onde estou, mas tu sabes
Estranho-te e esqueço-te por aqui ter estado
Em consciência sabendo que não existes
Que ris e floresces de modos artificiais
Incolores e inodoros para mim.
A voragem da luz
Na voragem da luz,
Militam carcaças das trevas,
Frustradas, ofendidas,
Mortas tentando alcançar a escuridão.
A cura da opressão divina,
Prisioneira, como doença funesta,
Caminha solitária nos dias,
Penetra sem medos nas talhas,
Compromete a ciência sagrada dos homens,
O sentimento superior sacramentado.
A luz, que a tudo toca e não renega,
Desenha com perfeição as curvas,
Destapa, descobre e despe
Os veludos nas janelas e olhos
Da insolente petulância da questão.
Porquê?
Que cobarde forma de mentir
E fugir à ousadia da evolução,
São os subterfúgios das metáforas celestiais
E a punição vingativa e sádica
Como ameaça e pena à diferença.
A luz revela os caminhos.
A gula do conhecimento ou o direito de pensar,
Aceitar ou rejeitar os dogmas mundanos,
Os profanos e os simbólicos.
Na voragem da luz,
Militam carcaças das trevas,
Frustradas, ofendidas,
Mortas tentando alcançar a escuridão.
A cura da opressão divina,
Prisioneira, como doença funesta,
Caminha solitária nos dias,
Penetra sem medos nas talhas,
Compromete a ciência sagrada dos homens,
O sentimento superior sacramentado.
A luz, que a tudo toca e não renega,
Desenha com perfeição as curvas,
Destapa, descobre e despe
Os veludos nas janelas e olhos
Da insolente petulância da questão.
Porquê?
Que cobarde forma de mentir
E fugir à ousadia da evolução,
São os subterfúgios das metáforas celestiais
E a punição vingativa e sádica
Como ameaça e pena à diferença.
A luz revela os caminhos.
A gula do conhecimento ou o direito de pensar,
Aceitar ou rejeitar os dogmas mundanos,
Os profanos e os simbólicos.
sexta-feira, outubro 24, 2003
Adamastor
Efémeros são os monstros, datadas são as razões.
Dias que são longos, curtas espadas em golpes desferidos na penumbra.
Insiste no disparate, culpa o teu medo do receio,
A tua culpa de teres medo, o receio de vires a ter perdão.
Viver na expectativa de ter expectativas e vontades,
De pensar que o escuro só é uma parte, e que depois vem o dia,
E que dá lugar a outro dia.
A fatalidade não é inevitável, o destino não está traçado,
As mãos de Deus não são mais do que... mãos.
Efémeras são as vontades, perenes vivências suportam corpos fracos,
Sem iniciativa, sem mudança.
No teu íntimo podes conspirar, criar, destruir, inventar, sonhar.
O que te pode prender o corpo, não te prende a ti.
Luta, porque neste mar de terra, onde as tristezas são alegrias,
Livre é o pensamento.
Transcende tempos toma lugar de coisas,
Ilumina noites, guia dias, muda olhares, cria vontades.
Efémeros são os monstros, e firme para sempre
É a liberdade de ser livre.
Efémeros são os monstros, datadas são as razões.
Dias que são longos, curtas espadas em golpes desferidos na penumbra.
Insiste no disparate, culpa o teu medo do receio,
A tua culpa de teres medo, o receio de vires a ter perdão.
Viver na expectativa de ter expectativas e vontades,
De pensar que o escuro só é uma parte, e que depois vem o dia,
E que dá lugar a outro dia.
A fatalidade não é inevitável, o destino não está traçado,
As mãos de Deus não são mais do que... mãos.
Efémeras são as vontades, perenes vivências suportam corpos fracos,
Sem iniciativa, sem mudança.
No teu íntimo podes conspirar, criar, destruir, inventar, sonhar.
O que te pode prender o corpo, não te prende a ti.
Luta, porque neste mar de terra, onde as tristezas são alegrias,
Livre é o pensamento.
Transcende tempos toma lugar de coisas,
Ilumina noites, guia dias, muda olhares, cria vontades.
Efémeros são os monstros, e firme para sempre
É a liberdade de ser livre.
Estive a escrever
Já ouvi muitas vezes dizer que me perdera.
Estive a escrever.
Será que o mundo parou, entretanto?
Nunca sei se as imagens que correm lá fora são alucinações,
Se fico diferente uns tempos
Satisfeito com as coisas que fiz.
Gosto da atmosfera fim de mundo, de fim de amor,
Onde escrever é uma coisa normal.
Não tem nada de especial,
Como um impulso, uma forma de acalmar,
O despontar de uma tempestade, de uma forma banal,
Aparente e poética, como as frase se tocam.
Indicia o que não se explica,
E as nuances, vêm depois.
É mais interessante.
É difícil não ser estéril, esconder ideias e emoções.
Não sou capaz. Tenho frio no vazio.
Gosto de espaço para a voz e mais espaço para o meu silêncio.
O silêncio urbano é musica que revela ideias
Neste país triste onde não há tempo para acreditar
Nem fazer a diferença, nem ter ideias comuns.
É tudo difícil.
Não é uma questão de falta de ideias,
Falta vontade de arriscar.
É preciso marcar as coisas,
Amar por magia, não haver nada maior,
Esquecer os cadáveres que ficaram pelo caminho.
Agarrar e arranhar o meu espaço
Onde cabe tanta gente.
Já ouvi muitas vezes dizer que me perdera.
Estive a escrever.
Será que o mundo parou, entretanto?
Nunca sei se as imagens que correm lá fora são alucinações,
Se fico diferente uns tempos
Satisfeito com as coisas que fiz.
Gosto da atmosfera fim de mundo, de fim de amor,
Onde escrever é uma coisa normal.
Não tem nada de especial,
Como um impulso, uma forma de acalmar,
O despontar de uma tempestade, de uma forma banal,
Aparente e poética, como as frase se tocam.
Indicia o que não se explica,
E as nuances, vêm depois.
É mais interessante.
É difícil não ser estéril, esconder ideias e emoções.
Não sou capaz. Tenho frio no vazio.
Gosto de espaço para a voz e mais espaço para o meu silêncio.
O silêncio urbano é musica que revela ideias
Neste país triste onde não há tempo para acreditar
Nem fazer a diferença, nem ter ideias comuns.
É tudo difícil.
Não é uma questão de falta de ideias,
Falta vontade de arriscar.
É preciso marcar as coisas,
Amar por magia, não haver nada maior,
Esquecer os cadáveres que ficaram pelo caminho.
Agarrar e arranhar o meu espaço
Onde cabe tanta gente.
quinta-feira, outubro 09, 2003
Carta a um amor inevitável - por Pedro rapoula
Sento-me na praça do Giraldo no momento exacto em que passa um cortejo de casamento. Os apitos dos automóveis manifestam alarvemente uma felicidade que é de todos e não pertence a ninguém. E é assim que me vem à mente uma infelicidade que é tão minha e me pertence tanto.
Onde estás? Ainda existes? Morreste mesmo, como me disseram? Passaste a noite nos braços de outro? Massacro-me com esta imagem até chegar à exaustão dos sentidos. Quero esquecer mas não consigo. Conheço bem os movimentos do teu corpo, como conheço o teu cheiro e o teu toque. Sei como começas e onde acabas. Mais do que a tua presença, sinto a tua existência. E penso que, afinal, tudo o que eras e a forma como renascias em mim não pertence apenas ao meu universo... É difícil viver com esta ideia quando tudo o que queria era que fosses minha do princípio ao fim...
Lembro, então, as gargalhadas que dava nos momentos da explosão final, quando, enebriados de suor, de prazer e de cansaço, nos deixávamos cair suavemente nos braços um do outro. Eu ria, ria, ria muito e ria alto e tu limitavas-te a sorrir do meu disparate e da minha pureza. E de todas as vezes o ritual se repetia e o esboçar do teu sorriso tornou-se num misto de conforto e de calor. Acreditava nesses momentos que me amavas, que a tua, a nossa entrega era única e não tinha precedentes.
Havia noites em que se apoderava de mim um enorme pânico de te perder. Procurava-te pela cama e só a tua despreocupada respiração me serenava. Nesses momentos eu não dormia, deixava-me ficar ali, ao teu lado, observando-te adormecida, tão vulnerável, tão minha... E nesses momentos mais uma vez, acreditava que te tinha, que me pertencias, que eu era teu e que o universo nos estava destinado. Pensava, então, enquanto dormias com essa tua serena forma de meditar, que tudo era grande e belo, e imaginava para nós todo um mundo de futuro e de partilha.
Um dia ganhei a coragem necessária: - queres namorar comigo? A realidade cortante não demorou um segundo. Não! - respondeste. Baixei os olhos, talvez por vergonha, talvez com medo, ou provavelmente por razão nenhuma. Penso, agora, que os baixei para não ler no teu olhar que já não me pertencias. De resto, em vários momentos o teu comportamento era nada senão um sucessivo encadear de nãos e rejeições. E depois sorrias, com um sorriso terno, infantil e genuíno. E era então, nesses breves segundos que durava o teu sorriso, que eu esquecia a rejeição e me enchia da tua presença. Abria muito os olhos como uma criança à espera de uma surpresa e , do mesmo modo ansioso e febril, esperava por um beijo teu que iniciasse o nosso processo de entrega e de partilha. Os momentos em que isso não acontecia eram mais do que os momentos em que te deixavas amar. E normalmente depois do sorriso, limitavas-te a virar a cara e olhar em volta, enquanto na minha cabeça o teu - não! - crescia até me deixar vazio de sonhos, de partilha ou de amor. Era então que decidia partir, virar-te as costas e esquecer... mas eis que o teu sorriso se abria de novo e eu achava ali a forma do teu amor, a forma de tu me amares.
Quando me enchia de coragem (ou quando a mágoa era mais forte), exilava-me longe de Lisboa procurando deixar-te para trás e, no entanto, dava-me conta que tu estavas em toda a parte. Mesmo quando me deixaste em Barcelona. Primeiro achava que te encontraria apenas onde as recordações de nós estivessem presentes. Descobri depois que era eu o portador da tua presença, que te transportava comigo para todos os lugares, como a uma doença crónica. E assim me dei conta da inevitabilidade do nosso amor.
Sempre me convenci de que não existiam amores eternos... e sempre me enganei na procura dessa eternidade. Conhecer-te confirmou o erro em que vivia. O teu olhar fazia-me acreditar na distância do eterno e na proximidade do amor. Quando a nossa entrega era real, o tempo tornava-se nosso aliado e os momentos de eternidade pareciam estar em nós. E aí, viver de ti e para ti parecia-me a única saída. A forma como nos amávamos era intemporal e o modo como sorrias não fazia mais que confirmar essa intemporalidade.
Olho em volta e não te encontro e neste momento de uma lucidez cortante apercebo-me de que te perdi. Faço um esforço para acreditar que não partiste, que te pertenço, que me pertences e para nós não existe tempo nem espaço. Nós somos o tempo e o espaço, a noite e o dia, o longe e o perto. Não no sentido antagónico das verdades mas na verdade complementar dos sentidos: viver em nós, morrer em mim. Olho em volta, mais uma vez, e a tua ausência subitamente não faz sentido porque te amo, porque me amas e porque é em ti que me preencho. Sinto o teu cheiro em mim e vejo o teu corpo no meu. Porque é aí que existes, na procura que fazemos um do outro. Em qualquer outra noite sei que estendo o braço e no teu lado frio da cama descubro o corpo quente e familiar que me completa e me acalma.
Chamo por ti e o teu nome enche o espaço como se o ar não existisse no deserto da tua presença. E sei que respondes com o sim que nunca disseste e com a aceitação de um amor que nunca recebeste.
Não sei, sinceramente, o que me confunde mais, a ideia de te ter perdido ou a solidão que sinto. Porque, no fundo, amar-te foi sempre sentir-me só. Mesmo quando estávamos juntos, nunca éramos apenas nós porque insistias sempre em estar entre o resto do mundo. Como se a solidão do nosso amor te assustasse... Percebi, então, que era aí que existia a forma de te dares, na maneira social como vivias o nosso amor. E ali estava eu, do teu lado, rodeado de gente, e a ideia da solidão sobrepunha-se ao facto de estarmos juntos. Como quando estávamos só os dois, no carro, de mão dada, e evitavas o beijo porque alguém o poderia testemunhar. Da forma obcecada com que sempre te vivi acreditava que tinhas razão. E fazia o teu jogo, ainda mais subtilmente paranóico e obsessivo. O beijo era nosso, ninguém deveria vê-lo sob pena de o perdermos. Dou-me, agora, conta que o resto do mundo foi sempre o alibi para a forma como me não amavas... Se não insistisse no nosso amor, terias simplesmente passado os teus olhos por mim, como acabaste por fazer tantas e tantas vezes sem notar o desespero com que sempre procurei o teu olhar. Sinto-me só... mas não terei sempre estado só? Em que momentos partilhaste comigo a plenitude do que procurava em ti?
Escrevo-te, agora, porque, no fim de tudo, sei que escrever-te é a única forma de te manter em mim, de não te esquecer, de não deixar sair a tua presença. Porque de todo o sofrimento que ficou quando partiste, esquecer-te foi sempre o que não quis. Não concebia viver sem a tua presença. Viver em nós, morrer em mim, lembras-te? E não é, como me dizem, na tua ausência que te esqueço porque é exactamente na ausência de ti que mais te encontro. E de repente tudo se torna mais fácil porque te entregas e te deixas amar.
Lembro-me quando, numa noite, nos zangámos por teres ciúmes. Nesse momento fui a pessoa mais feliz do mundo porque me reconheci no teu ciúme, porque senti em ti o desejo de me possuíres. Eu era teu, o nosso amor era real e tu amavas-me de facto. Ironicamente, no momento em que tudo começava para mim, tu davas tudo por terminado. Nessa altura, e sem dar conta, perdi todas as defesas que me protegiam do sofrimento e entreguei-te tudo o que de mais precioso havia em mim. Porque nessa entrega apaixonada havia o compromisso de uma vida que abarcava o universo, o tempo e o espaço. É por isso que sei que não partiste e que estás ao meu lado. Porque um amor inevitável como o nosso não nem tempo, nem espaço, nem vida, nem morte. Existe de uma forma suprema como se todo o mundo fosse pequeno demais para o testemunhar. Mas tudo isto foi antes, muito antes. Porque houve um tempo em que a tua ausência se transformava numa espécie de dor física e, no desespero da minha solidão, não te ter ocupava todo o meu tempo e espaço. Nesses momentos procurava aflitivamente fazer-te viver em mim a ponto de, no limiar entre a dor e a loucura, acreditar que nunca tinhas existido para além das paredes da minha imaginação. Acreditava seres apenas uma criação da minha solidão... Porque era tudo demasiado frágil e eu sentia-me terrivelmente só. Entregava-me então a um processo de autocomiseração e, ao mesmo tempo, encarregava-me da tua divinização. Aí, agredia-me moral e fisicamente por nunca ter sabido amar-te. Porque, mais uma vez, no enaltecimento que fazia de ti, a fraqueza era sempre minha e era em mim que reconhecia a incapacidade de te amar.
Depois acordei deste transe. Prometi a mim mesmo que nunca mais me deixava iludir por esses mistérios que se chamam amor... Recuso-me a amar alguém, como me recuso a ser amado. Nunca precisei disso e sempre me desviei desse caminho.
Não me sinto muito bem... Já não me sentia assim há algum tempo. De vez em quando, por breves instantes consigo esquecer-me do dia em que morreste. Mas de repente, quando me encontro nessa doce abstracção, vêm-me à cabeça as imagens de todo aquele dia e venho a mim cheio de arrepios e estremecimentos. As coisas poderiam ter sido diferentes... Não deixa de ser irónico que tivesses sido justamente tu a pessoa a sobrepor-se ao meu egoísmo que sempre cultivei. Agora já nem esse egoísmo, essa forma de vida que fazia tão minha, já nem isso me resta. A única coisa que ocupa os meus dias, que ocupa a minha mente é a tua ausência. Como, pergunto eu, como é que a ausência pode preencher alguma coisa...? Não faz muito sentido, pois não? Estarei a ficar louco? Já li histórias assim, de pessoas que enlouquecem quando perdem alguém.
Às vezes surge em mim uma vontade imensa de escrever, não porque tenha ímpetos de escritor ou pretensões de poeta. É simplesmente porque uma folha branca inspira, sinto que desabafo... ou talvez não seja um desabafo, talvez queira apenas tirar da minha cabeça todas as palavras que se vão acumulando para sair e que acabam sempre por ficar cá dentro. A certa altura, letras, palavras e ideias atropelam-se e não há quem se oriente no meio desta confusão, nem mesmo eu... Hoje acordei com uma necessidade de deixar sair tudo, e só me dei conta porque, ao trabalhar, comecei a escrever coisas que não faziam sentido a não ser na confusão da minha mente...
Das poucas relações que tive, e repara que a ti não te vou incluir neste rol, até porque, sabes bem, tu nunca foste, de facto, apenas uma mera relação, todas ou quase todas, terminaram porque me comecei a sentir sufocado. De tanto fugir das pessoas e da solidão a que elas me poderiam eventualmente votar, acabei por me tornar uma pessoa fria para fora. Muitas foram as vezes em que sofri sozinho o facto de condenar outros à solidão. Não é uma coisa que encare com facilidade. Mas se alguém há-de sofrer, de uma forma ou outra esse alguém não hei-de ser eu! Sempre pensei desta forma e desta forma não havia relações que funcionassem. Até com a minha própria família sempre joguei com eles de uma forma ofensiva, de maneira a que, em caso de confronto, nunca fosse eu a ficar magoado. Porque no meio disto tudo é difícil ser coerente e por vezes quando mais nos apetece abraçar ou beijar, acabamos por rejeitar. No fim ficamos sozinhos e não temos com quem falar. No egoísmo da minha solidão não concebo não ter ninguém quando estiver por fim realmente só... já me chamaram egoísta tantas vezes... a certa altura já não sei se o sou, se sempre o fui ou se me fui convencendo de que o era após ouvir tantas vezes dos outros que essa era a minha maior característica. Será possível ser o egoísmo uma forma de defesa pessoal perante a solidão que sempre senti? Porque no fundo, se houve constante na minha vida, foi sempre a sensação de solidão. Mesmo naqueles momentos em que me julgava mais apaixonado e, por consequência, mais acompanhado, mesmo nesses momentos a solidão não me deixava. Lembro-me de ser criança e já aí me sentir só: eu e os meus brinquedos, e mesmo quando tinha a sorte ou a infelicidade de brincar com alguém, mesmo aí eu me isolava e tentava construir o meu mundo, como se coabitasse em mim uma espécie de autista. Ou talvez fosse esta a melhor forma de prevenir os momentos após a partida das minhas companhias. No fundo era como se nunca aproveitasse a presença do outro porque a sabia finita. Foi sempre assim...
Terminei há mais de quatro meses o meu ultimo relacionamento. Não a amava. Chamava-se Nana. Mas isso não interessa. De resto não posso dizer que alguma vez tenha amado quem quer que seja depois de te conhecer e de te perder, é evidente. Acho o amor puro um sentimento impossível de existir. Em última análise é a expressão máxima do egoísmo. Uma pessoa só ama para se sentir amada. E só se sente feliz se sente amada. Ora se a felicidade individual depende da relação que se tem ou não com outro ser, essa busca pela outra pessoa é uma busca egoísta. Só se ama o outro porque de outra forma não nos sentimos bem... Eu sempre me senti bem sozinho. Tive um ou outro caso, antes de te conhecer, que me abalaram mais, não porque amasse, mas porque o grau de entrega foi maior. Mas a lição que aprendi nesses casos ensinou-me que quanto maior a entrega, maior o sofrimento. Desta forma tornei-me calculista e no principio de cada relação já conseguia vislumbrar o fim... Desta forma é difícil as coisas resultarem. Lembro-me de uma relação em que a outra pessoa ainda era pior que eu.. Deu-me luta. Era egoísta e oportunista. Perdi e, achava eu, nunca tinha sofrido tanto na vida. Lembro-me que o fim foi num verão e que ia muito para a praia. Pelo caminho, ouvia as músicas mais deprimentes que encontrava em cada CD que tinha e chorava o caminho todo. Sentia-me tão bem, no fim... Porque acreditava que aquele sofrimento era o que mais próximo eu tinha sentido do amor. E então entregava-me a esse processo de choro compulsivo, de sofrimento carregado, como se aquela relação de 2 meses fosse o casamento de 20 anos. Passadas uma ou duas semanas, lágrimas esgotadas, já nem me lembrava de como tudo aquilo tinha começado e voltava ao meu saudável isolamento...
Tento perceber em mim onde começou este meu processo irreversível pelos caminhos da solidão. Percebo enfim que, no meio de tanta gente que sempre me rodeou, não havia tanto tempo para cada uma das pessoas e que na minha infância tenha procurado sempre formas de me amar a mim mesmo. Como se à minha volta não existisse esse amor. Há pessoas assim, que precisam mais ou menos da atenção e do amor dos outros. Eu passei de um extremo ao outro. Não me custa. Não sofro minimamente com isso. Sei que o processo natural do Homem é ir ficando sozinho, seja por opção, seja porque à nossa volta as pessoas vão, naturalmente, desaparecendo. Pelo sim pelo não, porque não antecipar essa solidão? Solitários houve sempre na história do mundo. Para mim, todos os poetas são solitários, sem querer com isto dizer que todos os solitários são poetas. Existem poetas da solidão e existem solitários da destruição.
Estes tais solitários da destruição são aqueles seres cruéis por natureza que a pouco e pouco vão afastando os outros da sua esfera.. Não é o meu caso. Nunca fui desagradável para os outros. Nunca os tentei afastar. Normalmente sou eu quem me afasto. Ou então, quando estou mais preenchido de uma lucidez que me fere, tento fazer com que nem cheguem a aproximar-se. Tudo para não lhes adivinhar o afastamento inevitável.
Tenho saudades tuas. Vês como consigo escrever as coisas mais cruéis do mundo? Sempre me achaste um fraco. E de facto ao pé de ti eu era vulnerável. Quebraste as barreiras do meu isolamento e com isso destruíste-me as defesas. Na altura, disseste, era o preço a pagar pelo teu amor. Nunca fomos felizes e ainda assim, a tua morte acabou por se tornar na forma de me pertenceres para sempre. Porque me apropriei da tua memória e agora sinto que só a mim me pertences. É irónico, não é? Enquanto viveste nunca conseguimos realmente pertencer um ao outro. E agora já não há nada que te arranque de mim porque a tua existência tornou-se intemporal. Há noites em que sei perfeitamente que estás ao meu lado, porque sinto o teu calor, porque ouço o teu respirar e até te consigo tocar. Imagino-me a percorrer o teu corpo com as minhas mãos, com um toque suave que te causa arrepio. E tu a deixares-te amar de um modo confortável e descomprometido, como nunca fizeste.
Não consigo perceber porquê, mas tenho-me lembrado imenso de alguns momentos mais ou menos bons que passei ao teu lado. Lembrei-me daquela vez em que me telefonaste a dizer que querias passar comigo um dia em cheio. Contavas comigo para te surpreender. Fiquei numa excitação infantil. Fui para casa e como estava uma noite de verão quentíssima achei que poderíamos comer na varanda, que era o mais próximo do grande terraço com que sempre sonhaste... Fiz tudo o que era suposto. Cozinhei as coisas mais sofisticadas que sabia, com direito a entrada e sobremesa. Pus a mesa lá fora, com velas e um ambiente o mais quente e tropical possível, que nos remetesse a um cenário exótico, lembrando talvez as férias sempre prometidas, mas nunca cumpridas... Quando acabei todos estes preparativos enfiei-me na casa de banho e tomei um daqueles duches que nos deixam preparado para nos amarmos. Vesti uma camisa branca, a tua favorita, e acendi as velas todas da casa. Pus Bossa Nova na aparelhagem e esperei por ti. Esperei... esperei... e nunca apareceste. Quando te liguei respondeste que não te tinha dado jeito aparecer. Como se tudo o que me tinha motivado não significasse nada para ti... E de facto não significava. Não te sei dizer bem o que senti. Vou contar-te uma história. A minha mãe sempre trabalhou muito, fora de casa. Chegava sempre muito tarde e eu já estava deitado. Naqueles momentos após eu me deitar, ficava muito direito e quieto na cama, esperando que a porta de casa abrisse. Era terrível aquela angústia, a de não querer adormecer sem ouvir o barulho da chave que significava que provavelmente a mãe iria ao quarto dar-me um beijo de boa noite. Acabava sempre por adormecer, e no meio da revolta da manhã seguinte, ficava em mim uma sensação de vazio que me deixava inseguro e muito só. Pior que isso era estar acordado e perceber que os passos dela se encaminhavam para todos os lados menos para o meu quarto. Aí sim, sofria a sério. Sentia algo a quebrar-se por dentro e penso, agora, que foi assim que fui perdendo a noção de ser criança. Conto-te tudo isto porque nessa noite, todas essas imagens e sensações da minha infância voltaram a percorrer o meu cérebro. Acho que por instantes voltei a ser a criança solitária que fui. Desta vez não chorei, desta vez limitei-me a apanhar os pedacinhos de mim. E prometi a mim mesmo que iria ser forte de novo. Dias depois começou o teu processo penoso em direcção ao fim. E eu esqueci-me da minha promessa e mesmo contra tua vontade, acompanhei-te e estive ao teu lado, assistindo a algo que sempre me proibiste de ver: o teu sofrimento.
Não tenho saído, sabes? Quando saio para trabalhar, tento vir directamente para casa para me sentir contigo, aqui, entre estas quatro paredes. Ultimamente ainda ia com uns tipos lá do escritório até um bar, onde acabava sempre por petiscar algo que me servia de jantar. Detesto comer sozinho... Mas deixei de ir quando, outro dia, estava pacientemente a beber o meu gin e uma mulher se aproximou de mim, tentando à força olhar-me nos olhos. Odeio que tentem olhar-me bem fundo, nos olhos. Disse-me que se percebia perfeitamente que eu estava muito só. Divorciado? – sugeriu. A minha resposta calou toda a gente à nossa volta, naquele bar, não tanto pelo seu teor, mas pelo bofetão que ela fez questão de me dar. Limitei-me a responder-lhe que, com efeito, cultivava a minha solidão. Além do mais – disse – não pago bebidas a pêgas! Desapareça!
Depois desse dia não voltei a ir àquele bar, ou a qualquer outro, não tanto porque tenha medo que se lembrem do meu vexame, mas mais porque não posso admitir que mulher alguma se coloque entre mim e a tua memória. E, de qualquer forma, nunca mais ninguém me convidou para ir a bar nenhum depois do emprego. Acho que há vícios que a solidão traz consigo e um deles é mesmo o de nos tornarmos amargos. Como os outros não perdoam isso, acabamos por deixar de receber convites para o que quer que seja. E além do mais eu percebo que ninguém queira uma companhia sempre de cara fechada, sempre a falar do mesmo... Irrita-me que já não queiram ouvir falar de ti. Pedem-me que te enterre de uma vez por toda, antes que dê em doido. Não percebem que estás sempre comigo. Já não aturo ninguém. Não faço fretes.
Outro dia pus-me a pensar que me poderia reformar. Ainda me faltam uns anos para a reforma completa, mas vendo a casa aqui de Lisboa e compro uma casa no campo, onde possa ter o cão que este apartamento nunca me permitiria ter. É o regresso às origens. Mas e se depois não encontras o caminho para junto de mim? Penso nisso imensas vezes, que saio desta casa e depois deixo de te ver, de te encontrar a vaguear por aí com as tuas insónias habituais. E não sei já, se sou capaz de viver sem ti por aí. Por isso é que não convido ninguém para cá vir. Tenho medo que te sintas pouco à vontade. Sei que sempre gostaste de andar nua por aí. Não quero limitar-te. Quero-te solta e irreverente como sempre foste. E quero esquecer que por vezes eras amarga e me tornavas a vida num inferno. Porque no fundo o inferno era apenas a minha incapacidade de deixar de ser egoísta. Ainda te amo. Ou por outra, amo-te mais ainda, porque és aquilo que eu quero que sejas. Ficaram para trás as discussões, as insónias e os berros. Só me lembro de ti a correr no jardim do Campo Grande com aquela saia de flores que sempre detestei, mas que te dava um ar de hippie que, por irritar a minha mãe, fazia de ti a pessoa ideal para estar ao meu lado.
Prometi a mim mesmo que vou regressar à vida. Para isso inventei um ritual. Agarrei na caixa que tenho com as infinitas fotografias que te tirei e decidi que todos os dias tiro uma. Passo horas a fixá-la até a conhecer de cor e no fim rasgo-a em mil pedaços. Conto com isto acabar com todas a fotografias e poder enfim passar a um plano menos corpóreo da tua memória. Porque se conseguir fixar todos os teus traços e expressões, não vai haver perigo de que te esqueça. É disso que tenho medo. De me esquecer da tua cara. Há histórias de pessoas que a pouco e pouco vão esquecendo as feições dos que mais amaram. Connosco não há esse perigo porque te vejo todos os dias. Mas já pensaste o que seria, se te esquecesse? Fizeste-me prometer, no meio da lamechice que nunca quiseste, que nunca te iria chorar, quando morresses. Mas chorei chorei porque no dia em que morreste entraste na minha vida como nunca tinhas estado antes.
Ontem encontrei aquela tua amiga, com quem jantavas todas as quartas feiras. Casou, tem um filho pequeno, e perguntou-me no meio de saudades e lágrimas, se já tinha refeito a minha vida. Mas refazer como, se nunca se desfez? É terrível a forma como as pessoas desconhecem a nossa relação, mesmo que lhes diga que estou bem olham para mim sempre com um toque de piedade. Faz-me lembrar aqueles filmes que sempre te recusaste a ver comigo, em que um casal em tudo perfeito (exactamente o oposto de nós dois), se desfazia pela morte de um dos dois. O sobrevivente acabava sempre por encontrar outra pessoa. Como encaravas tu o encontrares-me com outra pessoa aqui em casa, profanando aquele espaço que sempre foi tão nosso? Tens o teu território marcado, é o que penso sempre para comigo. Não posso ultrapassar o peso da tua presença, mas reconheço que por vezes me falta o ar quando penso na eternidade desse teu estado imaterial. Sei que me rodeias mas por vezes a força para te agarrar não chega e foges de mim, correndo pela casa, brincando comigo. Tenho medo disso. Porque foges tu? És feliz?
Sabes, tenho tido, ultimamente, muitos flashes de momentos passados. Subitamente sou envolvido por uma espécie de melancolia quase cinematográfica que me faz viver um flashback e dou por mim sentado num autocarro, a caminho da universidade em Barcelona, ou vejo-me a comprar bilhetes para um cinema, em Paris. É estranho porque são momentos inofensivos e até quase agradáveis, mas depois, de repente, quando venho a mim, sinto-me mergulhar num desespero sem limites, como se estas viagens servissem apenas para me atormentarem, como que para me lembrarem que já estou parado no mesmo lugar há tempo demais. O pior de tudo é que acredito que a loucura é feita destas pequenas nuances e que começo a aproximar-me demasiado desse limiar, dessa ténue linha entre a sanidade e a completa perdição. Não sei se partir será a solução. E se tu não me seguires?
De resto tenho andado mais bem disposto. Às vezes sinto que começo a ficar maníaco- depressivo mas agora já estou melhor. Sabes como é, nem sempre o sorriso que ostento representa o que vai cá dentro (isto até poderia ser um pequeno apontamento de poesia). Cada vez me convenço mais que sou completamente desequilibrado mental, mas acho que isso até tem alguma graça. Enquanto não entrar num caminho sem retorno. Lembras-te do filme "Chocolat" com a Juliette Binoche? Pois é, lá passavam a imagem de uma mulher com fortes tendências para partir, sempre partir. Eu acho que sou um bocadinho assim. Sinto em mim um desejo incontrolável de conquista que se materializa numa sensação de falta de liberdade. Como se estivesse agrilhoado a um mundo que não escolhi, que fui impelido a aceitar. Não há nada melhor que chegar a um sítio onde não conseguimos nem pronunciar os nomes das ruas. É bom vaguear assim, à deriva por caminhos totalmente desconhecidos, ter que perguntar o caminho de volta para casa, às vezes até com gestos para que nos entendam.
Tenho escrito alguma coisa. Para dizer a verdade ando a tentar escrever um romance. Quanta pretensão, não achas? O problema é que me perco nos meandros da escrita e acabo por não saber onde acaba o romance e começa o purgante das minhas frustrações. Porque o que tenho escrito aproxima-se perigosamente de experiências que vivi e que não sei se estou preparado para as deixar sair assim. Mas faz-me bem. Ainda que nunca publique nada, tenho-me confrontado a mim mesmo com pequenas infelicidades que vêm desde a infância e que ao descrevê-las consigo finalmente começar a arrumá-las sem que me perturbem como fizeram durante anos e anos em que me parecia melhor tentar esquecer. É como se deixassem de ser minhas e passassem para a personagem do livro. Por isso agora assumi comigo mesmo o compromisso de não recalcar nada. Confronto-me com tudo. Claro que se torna francamente perigoso trilhar um caminho destes. Ficamos mais duros connosco mesmos e com os outros. E nem sempre as pessoas estão preparadas para encarar a frontalidade. Mas subitamente a mim pouco me importa começar a isolar-me porque tenho em mim a convicção de que descubro cá dentro a companhia necessária para quando ficar sozinho. Porque a solidão é inevitável, meu amor, e ninguém me convence do contrário. É o caminho natural do Homem. E depois nunca estamos francamente sós. À semelhança de Pessoa, há em mim, e acredito que em muito mais gente, formas de vida que nos complementam, que se responsabilizam pela nossa diversão. Doce loucura, poderá chamar-se assim? Tenho que partir: "Navegar é preciso, viver não é preciso, ai não".
Descobri agora que adoro o Alentejo. Como é que é possível gostarmos de um sítio que nunca na vida nos disse nada? Será possível que esteja a ficar obsessivo? Ainda mais... Lembras-te da vontade que sempre tive em ir viver para um sítio que não me dissesse nada? Pois é, no fim de semana meti-me no carro e parti rumo a essa planície dourada. Queria encontrar um convento por lá, talvez de Franciscanos que são uma Ordem com alguma dignidade. Imagino-me acabar os meus dias rodeado de uma paz conventual, com horários para comer rezar e dormir e onde não tenha que falar com absolutamente ninguém. Aconteceu-me uma coisa engraçada. Encontrei o tal lugar que tinha idealizado, um mosteiro de clausura, onde a todos os votos inerentes à condição de monge, ainda acrescia o voto do silêncio. Pareceu-me ideal. A beleza do lugar era única. No cimo de um monte, com uma vista privilegiada, erguia-se uma construção de finais do século XVII, com as suas pedras centenárias e os seus azulejos perturbadoramente azuis e sagrados. Enquanto caminhava por ali tentando absorver a religiosidade do lugar, pude reparar que por trás das grades pouco cerradas uns olhos me espreitavam, seguindo atentamente todos os meus movimentos. Em menos de nada um monge saltou o muro e veio em direcção a mim, explicando atabalhoadamente e com a velocidade de quem não fala durante séculos seguidos que ele não podia estar ali mas que precisava desesperadamente de ver alguém, de ouvir uma voz que não entoasse apenas cânticos e rezas. Foi uma conversa rápida e angustiada. Ele falava com a convicção de que estaria a cometer o maior dos pecados. Raras vezes pude pronunciar uma palavra que fosse, dada a sua fúria de falar, de soltar sons profanos. Explicou-me um pouco da vida conventual e depois tal como apareceu, desapareceu, olhando por cima do ombro como quem foge de um destino inevitável. Deve ter-se penitenciado horas sem fim pela falta que cometeu, que afinal não foi assim tão grande porque em momento nenhum ele fez menção de querer saber alguma coisa do exterior. A nossa conversa foi apenas sobre a história daquele lugar e o seu papel no presente.
Depois de ver aquela angústia, cheguei à conclusão que talvez também não seja ali que encontro a paz de que preciso. Que inferno! Preciso desesperadamente de paz! Onde estás meu amor?
Hoje arrependo-me mil vezes de não termos ficado apenas amigos, como me propuseste na semana em que nos conhecemos, quando completamente embriagado de paixão por ti, te pedi que casasses comigo. Vamos ser só amigos, disseste, bons e grandes amigos. Mas, amigos? Como gostaria de ser teu amigo, mas não posso. Não posso porque quem ama pode jurar mil vezes por dia que só sente amizade, para que, na primeira oportunidade sinta ódio, desespero, solidão, ciúme e todos os sentimentos entrelaçados com o amor. Foi por isso que nunca desisti de ti e te amei com a força de quem se agarra à vida no momento final. Amei-te por mim e por ti, porque sei que o que te unia a mim, era um misto de piedade e carinho. Agora dou-me conta de tudo isto porque nunca quis ver que o teu amor não chegava para superar o quotidiano. De qualquer modo sempre mo disseste e pior que isso, sempre fizeste questão que eu o sentisse na pele. Ainda sabes o caminho de regresso para mim?
P.S Tive uma imagem interessante por estes dias, uma imagem que pode explicar um pouco aquilo que tenho sentido ultimamente... Consegues imaginar um rio, a descer pelo seu leito, por vezes mais rápido, por vezes mais lento, dependendo dos acidentes geográficos ou quem sabe dependendo da vontade de chegar à foz? Agora imagina que na nascente desse rio está uma árvore de onde se desprende uma folha. Essa folha vai descendo sempre com a corrente, percorrendo com o rio todos os lugares por onde este passa. Por vezes vai ao fundo, submerge, mas por norma acaba sempre por vir à tona. Mas eis que um dia essa folha fica presa numa margem, uma margem que é um lugar lindo de morrer, com flores e sol e luz e cor e alegria, e de repente o mundo daquela folha que não tinha fronteiras acaba por ficar resumido àquele pequeno paraíso. A folha que sempre se mantivera verde com a ajuda da frescura da água, ao ficar presa naquela margem começa a secar e desfaz-se em mil pedaços à medida que se vai enraizando naquele lugar. Pois bem, o rio é a corrente da vida e a folha sou eu. Começo a sentir pedaços de mim a desfazerem-se à medida que me vou enraizado cada vez mais neste lugar. Sinto que o meu caminho é chegar à foz, sempre em movimento e mergulhar enfim na plenitude dos oceanos. Por muito paradisíaca que seja a margem em que estou, não posso deixar de ver o rio sempre a passar e sentir o desejo de partir com ele. Consegues assim entender porque me atormento tanto? Ando um bocado assustado com estas ideias, sabes.. Tento controlar em mim os ímpetos que tenho de partir de mochila às costas por esse mundo fora. Mas e se depois não for capaz de regressar? Por vezes tenho rasgos de grande entusiasmo mas depois há dias em que sou invadido por um pânico de que tudo corra mal e fico sem ar, como que asfixiado pela minha insegurança.
Sento-me na praça do Giraldo no momento exacto em que passa um cortejo de casamento. Os apitos dos automóveis manifestam alarvemente uma felicidade que é de todos e não pertence a ninguém. E é assim que me vem à mente uma infelicidade que é tão minha e me pertence tanto.
Onde estás? Ainda existes? Morreste mesmo, como me disseram? Passaste a noite nos braços de outro? Massacro-me com esta imagem até chegar à exaustão dos sentidos. Quero esquecer mas não consigo. Conheço bem os movimentos do teu corpo, como conheço o teu cheiro e o teu toque. Sei como começas e onde acabas. Mais do que a tua presença, sinto a tua existência. E penso que, afinal, tudo o que eras e a forma como renascias em mim não pertence apenas ao meu universo... É difícil viver com esta ideia quando tudo o que queria era que fosses minha do princípio ao fim...
Lembro, então, as gargalhadas que dava nos momentos da explosão final, quando, enebriados de suor, de prazer e de cansaço, nos deixávamos cair suavemente nos braços um do outro. Eu ria, ria, ria muito e ria alto e tu limitavas-te a sorrir do meu disparate e da minha pureza. E de todas as vezes o ritual se repetia e o esboçar do teu sorriso tornou-se num misto de conforto e de calor. Acreditava nesses momentos que me amavas, que a tua, a nossa entrega era única e não tinha precedentes.
Havia noites em que se apoderava de mim um enorme pânico de te perder. Procurava-te pela cama e só a tua despreocupada respiração me serenava. Nesses momentos eu não dormia, deixava-me ficar ali, ao teu lado, observando-te adormecida, tão vulnerável, tão minha... E nesses momentos mais uma vez, acreditava que te tinha, que me pertencias, que eu era teu e que o universo nos estava destinado. Pensava, então, enquanto dormias com essa tua serena forma de meditar, que tudo era grande e belo, e imaginava para nós todo um mundo de futuro e de partilha.
Um dia ganhei a coragem necessária: - queres namorar comigo? A realidade cortante não demorou um segundo. Não! - respondeste. Baixei os olhos, talvez por vergonha, talvez com medo, ou provavelmente por razão nenhuma. Penso, agora, que os baixei para não ler no teu olhar que já não me pertencias. De resto, em vários momentos o teu comportamento era nada senão um sucessivo encadear de nãos e rejeições. E depois sorrias, com um sorriso terno, infantil e genuíno. E era então, nesses breves segundos que durava o teu sorriso, que eu esquecia a rejeição e me enchia da tua presença. Abria muito os olhos como uma criança à espera de uma surpresa e , do mesmo modo ansioso e febril, esperava por um beijo teu que iniciasse o nosso processo de entrega e de partilha. Os momentos em que isso não acontecia eram mais do que os momentos em que te deixavas amar. E normalmente depois do sorriso, limitavas-te a virar a cara e olhar em volta, enquanto na minha cabeça o teu - não! - crescia até me deixar vazio de sonhos, de partilha ou de amor. Era então que decidia partir, virar-te as costas e esquecer... mas eis que o teu sorriso se abria de novo e eu achava ali a forma do teu amor, a forma de tu me amares.
Quando me enchia de coragem (ou quando a mágoa era mais forte), exilava-me longe de Lisboa procurando deixar-te para trás e, no entanto, dava-me conta que tu estavas em toda a parte. Mesmo quando me deixaste em Barcelona. Primeiro achava que te encontraria apenas onde as recordações de nós estivessem presentes. Descobri depois que era eu o portador da tua presença, que te transportava comigo para todos os lugares, como a uma doença crónica. E assim me dei conta da inevitabilidade do nosso amor.
Sempre me convenci de que não existiam amores eternos... e sempre me enganei na procura dessa eternidade. Conhecer-te confirmou o erro em que vivia. O teu olhar fazia-me acreditar na distância do eterno e na proximidade do amor. Quando a nossa entrega era real, o tempo tornava-se nosso aliado e os momentos de eternidade pareciam estar em nós. E aí, viver de ti e para ti parecia-me a única saída. A forma como nos amávamos era intemporal e o modo como sorrias não fazia mais que confirmar essa intemporalidade.
Olho em volta e não te encontro e neste momento de uma lucidez cortante apercebo-me de que te perdi. Faço um esforço para acreditar que não partiste, que te pertenço, que me pertences e para nós não existe tempo nem espaço. Nós somos o tempo e o espaço, a noite e o dia, o longe e o perto. Não no sentido antagónico das verdades mas na verdade complementar dos sentidos: viver em nós, morrer em mim. Olho em volta, mais uma vez, e a tua ausência subitamente não faz sentido porque te amo, porque me amas e porque é em ti que me preencho. Sinto o teu cheiro em mim e vejo o teu corpo no meu. Porque é aí que existes, na procura que fazemos um do outro. Em qualquer outra noite sei que estendo o braço e no teu lado frio da cama descubro o corpo quente e familiar que me completa e me acalma.
Chamo por ti e o teu nome enche o espaço como se o ar não existisse no deserto da tua presença. E sei que respondes com o sim que nunca disseste e com a aceitação de um amor que nunca recebeste.
Não sei, sinceramente, o que me confunde mais, a ideia de te ter perdido ou a solidão que sinto. Porque, no fundo, amar-te foi sempre sentir-me só. Mesmo quando estávamos juntos, nunca éramos apenas nós porque insistias sempre em estar entre o resto do mundo. Como se a solidão do nosso amor te assustasse... Percebi, então, que era aí que existia a forma de te dares, na maneira social como vivias o nosso amor. E ali estava eu, do teu lado, rodeado de gente, e a ideia da solidão sobrepunha-se ao facto de estarmos juntos. Como quando estávamos só os dois, no carro, de mão dada, e evitavas o beijo porque alguém o poderia testemunhar. Da forma obcecada com que sempre te vivi acreditava que tinhas razão. E fazia o teu jogo, ainda mais subtilmente paranóico e obsessivo. O beijo era nosso, ninguém deveria vê-lo sob pena de o perdermos. Dou-me, agora, conta que o resto do mundo foi sempre o alibi para a forma como me não amavas... Se não insistisse no nosso amor, terias simplesmente passado os teus olhos por mim, como acabaste por fazer tantas e tantas vezes sem notar o desespero com que sempre procurei o teu olhar. Sinto-me só... mas não terei sempre estado só? Em que momentos partilhaste comigo a plenitude do que procurava em ti?
Escrevo-te, agora, porque, no fim de tudo, sei que escrever-te é a única forma de te manter em mim, de não te esquecer, de não deixar sair a tua presença. Porque de todo o sofrimento que ficou quando partiste, esquecer-te foi sempre o que não quis. Não concebia viver sem a tua presença. Viver em nós, morrer em mim, lembras-te? E não é, como me dizem, na tua ausência que te esqueço porque é exactamente na ausência de ti que mais te encontro. E de repente tudo se torna mais fácil porque te entregas e te deixas amar.
Lembro-me quando, numa noite, nos zangámos por teres ciúmes. Nesse momento fui a pessoa mais feliz do mundo porque me reconheci no teu ciúme, porque senti em ti o desejo de me possuíres. Eu era teu, o nosso amor era real e tu amavas-me de facto. Ironicamente, no momento em que tudo começava para mim, tu davas tudo por terminado. Nessa altura, e sem dar conta, perdi todas as defesas que me protegiam do sofrimento e entreguei-te tudo o que de mais precioso havia em mim. Porque nessa entrega apaixonada havia o compromisso de uma vida que abarcava o universo, o tempo e o espaço. É por isso que sei que não partiste e que estás ao meu lado. Porque um amor inevitável como o nosso não nem tempo, nem espaço, nem vida, nem morte. Existe de uma forma suprema como se todo o mundo fosse pequeno demais para o testemunhar. Mas tudo isto foi antes, muito antes. Porque houve um tempo em que a tua ausência se transformava numa espécie de dor física e, no desespero da minha solidão, não te ter ocupava todo o meu tempo e espaço. Nesses momentos procurava aflitivamente fazer-te viver em mim a ponto de, no limiar entre a dor e a loucura, acreditar que nunca tinhas existido para além das paredes da minha imaginação. Acreditava seres apenas uma criação da minha solidão... Porque era tudo demasiado frágil e eu sentia-me terrivelmente só. Entregava-me então a um processo de autocomiseração e, ao mesmo tempo, encarregava-me da tua divinização. Aí, agredia-me moral e fisicamente por nunca ter sabido amar-te. Porque, mais uma vez, no enaltecimento que fazia de ti, a fraqueza era sempre minha e era em mim que reconhecia a incapacidade de te amar.
Depois acordei deste transe. Prometi a mim mesmo que nunca mais me deixava iludir por esses mistérios que se chamam amor... Recuso-me a amar alguém, como me recuso a ser amado. Nunca precisei disso e sempre me desviei desse caminho.
Não me sinto muito bem... Já não me sentia assim há algum tempo. De vez em quando, por breves instantes consigo esquecer-me do dia em que morreste. Mas de repente, quando me encontro nessa doce abstracção, vêm-me à cabeça as imagens de todo aquele dia e venho a mim cheio de arrepios e estremecimentos. As coisas poderiam ter sido diferentes... Não deixa de ser irónico que tivesses sido justamente tu a pessoa a sobrepor-se ao meu egoísmo que sempre cultivei. Agora já nem esse egoísmo, essa forma de vida que fazia tão minha, já nem isso me resta. A única coisa que ocupa os meus dias, que ocupa a minha mente é a tua ausência. Como, pergunto eu, como é que a ausência pode preencher alguma coisa...? Não faz muito sentido, pois não? Estarei a ficar louco? Já li histórias assim, de pessoas que enlouquecem quando perdem alguém.
Às vezes surge em mim uma vontade imensa de escrever, não porque tenha ímpetos de escritor ou pretensões de poeta. É simplesmente porque uma folha branca inspira, sinto que desabafo... ou talvez não seja um desabafo, talvez queira apenas tirar da minha cabeça todas as palavras que se vão acumulando para sair e que acabam sempre por ficar cá dentro. A certa altura, letras, palavras e ideias atropelam-se e não há quem se oriente no meio desta confusão, nem mesmo eu... Hoje acordei com uma necessidade de deixar sair tudo, e só me dei conta porque, ao trabalhar, comecei a escrever coisas que não faziam sentido a não ser na confusão da minha mente...
Das poucas relações que tive, e repara que a ti não te vou incluir neste rol, até porque, sabes bem, tu nunca foste, de facto, apenas uma mera relação, todas ou quase todas, terminaram porque me comecei a sentir sufocado. De tanto fugir das pessoas e da solidão a que elas me poderiam eventualmente votar, acabei por me tornar uma pessoa fria para fora. Muitas foram as vezes em que sofri sozinho o facto de condenar outros à solidão. Não é uma coisa que encare com facilidade. Mas se alguém há-de sofrer, de uma forma ou outra esse alguém não hei-de ser eu! Sempre pensei desta forma e desta forma não havia relações que funcionassem. Até com a minha própria família sempre joguei com eles de uma forma ofensiva, de maneira a que, em caso de confronto, nunca fosse eu a ficar magoado. Porque no meio disto tudo é difícil ser coerente e por vezes quando mais nos apetece abraçar ou beijar, acabamos por rejeitar. No fim ficamos sozinhos e não temos com quem falar. No egoísmo da minha solidão não concebo não ter ninguém quando estiver por fim realmente só... já me chamaram egoísta tantas vezes... a certa altura já não sei se o sou, se sempre o fui ou se me fui convencendo de que o era após ouvir tantas vezes dos outros que essa era a minha maior característica. Será possível ser o egoísmo uma forma de defesa pessoal perante a solidão que sempre senti? Porque no fundo, se houve constante na minha vida, foi sempre a sensação de solidão. Mesmo naqueles momentos em que me julgava mais apaixonado e, por consequência, mais acompanhado, mesmo nesses momentos a solidão não me deixava. Lembro-me de ser criança e já aí me sentir só: eu e os meus brinquedos, e mesmo quando tinha a sorte ou a infelicidade de brincar com alguém, mesmo aí eu me isolava e tentava construir o meu mundo, como se coabitasse em mim uma espécie de autista. Ou talvez fosse esta a melhor forma de prevenir os momentos após a partida das minhas companhias. No fundo era como se nunca aproveitasse a presença do outro porque a sabia finita. Foi sempre assim...
Terminei há mais de quatro meses o meu ultimo relacionamento. Não a amava. Chamava-se Nana. Mas isso não interessa. De resto não posso dizer que alguma vez tenha amado quem quer que seja depois de te conhecer e de te perder, é evidente. Acho o amor puro um sentimento impossível de existir. Em última análise é a expressão máxima do egoísmo. Uma pessoa só ama para se sentir amada. E só se sente feliz se sente amada. Ora se a felicidade individual depende da relação que se tem ou não com outro ser, essa busca pela outra pessoa é uma busca egoísta. Só se ama o outro porque de outra forma não nos sentimos bem... Eu sempre me senti bem sozinho. Tive um ou outro caso, antes de te conhecer, que me abalaram mais, não porque amasse, mas porque o grau de entrega foi maior. Mas a lição que aprendi nesses casos ensinou-me que quanto maior a entrega, maior o sofrimento. Desta forma tornei-me calculista e no principio de cada relação já conseguia vislumbrar o fim... Desta forma é difícil as coisas resultarem. Lembro-me de uma relação em que a outra pessoa ainda era pior que eu.. Deu-me luta. Era egoísta e oportunista. Perdi e, achava eu, nunca tinha sofrido tanto na vida. Lembro-me que o fim foi num verão e que ia muito para a praia. Pelo caminho, ouvia as músicas mais deprimentes que encontrava em cada CD que tinha e chorava o caminho todo. Sentia-me tão bem, no fim... Porque acreditava que aquele sofrimento era o que mais próximo eu tinha sentido do amor. E então entregava-me a esse processo de choro compulsivo, de sofrimento carregado, como se aquela relação de 2 meses fosse o casamento de 20 anos. Passadas uma ou duas semanas, lágrimas esgotadas, já nem me lembrava de como tudo aquilo tinha começado e voltava ao meu saudável isolamento...
Tento perceber em mim onde começou este meu processo irreversível pelos caminhos da solidão. Percebo enfim que, no meio de tanta gente que sempre me rodeou, não havia tanto tempo para cada uma das pessoas e que na minha infância tenha procurado sempre formas de me amar a mim mesmo. Como se à minha volta não existisse esse amor. Há pessoas assim, que precisam mais ou menos da atenção e do amor dos outros. Eu passei de um extremo ao outro. Não me custa. Não sofro minimamente com isso. Sei que o processo natural do Homem é ir ficando sozinho, seja por opção, seja porque à nossa volta as pessoas vão, naturalmente, desaparecendo. Pelo sim pelo não, porque não antecipar essa solidão? Solitários houve sempre na história do mundo. Para mim, todos os poetas são solitários, sem querer com isto dizer que todos os solitários são poetas. Existem poetas da solidão e existem solitários da destruição.
Estes tais solitários da destruição são aqueles seres cruéis por natureza que a pouco e pouco vão afastando os outros da sua esfera.. Não é o meu caso. Nunca fui desagradável para os outros. Nunca os tentei afastar. Normalmente sou eu quem me afasto. Ou então, quando estou mais preenchido de uma lucidez que me fere, tento fazer com que nem cheguem a aproximar-se. Tudo para não lhes adivinhar o afastamento inevitável.
Tenho saudades tuas. Vês como consigo escrever as coisas mais cruéis do mundo? Sempre me achaste um fraco. E de facto ao pé de ti eu era vulnerável. Quebraste as barreiras do meu isolamento e com isso destruíste-me as defesas. Na altura, disseste, era o preço a pagar pelo teu amor. Nunca fomos felizes e ainda assim, a tua morte acabou por se tornar na forma de me pertenceres para sempre. Porque me apropriei da tua memória e agora sinto que só a mim me pertences. É irónico, não é? Enquanto viveste nunca conseguimos realmente pertencer um ao outro. E agora já não há nada que te arranque de mim porque a tua existência tornou-se intemporal. Há noites em que sei perfeitamente que estás ao meu lado, porque sinto o teu calor, porque ouço o teu respirar e até te consigo tocar. Imagino-me a percorrer o teu corpo com as minhas mãos, com um toque suave que te causa arrepio. E tu a deixares-te amar de um modo confortável e descomprometido, como nunca fizeste.
Não consigo perceber porquê, mas tenho-me lembrado imenso de alguns momentos mais ou menos bons que passei ao teu lado. Lembrei-me daquela vez em que me telefonaste a dizer que querias passar comigo um dia em cheio. Contavas comigo para te surpreender. Fiquei numa excitação infantil. Fui para casa e como estava uma noite de verão quentíssima achei que poderíamos comer na varanda, que era o mais próximo do grande terraço com que sempre sonhaste... Fiz tudo o que era suposto. Cozinhei as coisas mais sofisticadas que sabia, com direito a entrada e sobremesa. Pus a mesa lá fora, com velas e um ambiente o mais quente e tropical possível, que nos remetesse a um cenário exótico, lembrando talvez as férias sempre prometidas, mas nunca cumpridas... Quando acabei todos estes preparativos enfiei-me na casa de banho e tomei um daqueles duches que nos deixam preparado para nos amarmos. Vesti uma camisa branca, a tua favorita, e acendi as velas todas da casa. Pus Bossa Nova na aparelhagem e esperei por ti. Esperei... esperei... e nunca apareceste. Quando te liguei respondeste que não te tinha dado jeito aparecer. Como se tudo o que me tinha motivado não significasse nada para ti... E de facto não significava. Não te sei dizer bem o que senti. Vou contar-te uma história. A minha mãe sempre trabalhou muito, fora de casa. Chegava sempre muito tarde e eu já estava deitado. Naqueles momentos após eu me deitar, ficava muito direito e quieto na cama, esperando que a porta de casa abrisse. Era terrível aquela angústia, a de não querer adormecer sem ouvir o barulho da chave que significava que provavelmente a mãe iria ao quarto dar-me um beijo de boa noite. Acabava sempre por adormecer, e no meio da revolta da manhã seguinte, ficava em mim uma sensação de vazio que me deixava inseguro e muito só. Pior que isso era estar acordado e perceber que os passos dela se encaminhavam para todos os lados menos para o meu quarto. Aí sim, sofria a sério. Sentia algo a quebrar-se por dentro e penso, agora, que foi assim que fui perdendo a noção de ser criança. Conto-te tudo isto porque nessa noite, todas essas imagens e sensações da minha infância voltaram a percorrer o meu cérebro. Acho que por instantes voltei a ser a criança solitária que fui. Desta vez não chorei, desta vez limitei-me a apanhar os pedacinhos de mim. E prometi a mim mesmo que iria ser forte de novo. Dias depois começou o teu processo penoso em direcção ao fim. E eu esqueci-me da minha promessa e mesmo contra tua vontade, acompanhei-te e estive ao teu lado, assistindo a algo que sempre me proibiste de ver: o teu sofrimento.
Não tenho saído, sabes? Quando saio para trabalhar, tento vir directamente para casa para me sentir contigo, aqui, entre estas quatro paredes. Ultimamente ainda ia com uns tipos lá do escritório até um bar, onde acabava sempre por petiscar algo que me servia de jantar. Detesto comer sozinho... Mas deixei de ir quando, outro dia, estava pacientemente a beber o meu gin e uma mulher se aproximou de mim, tentando à força olhar-me nos olhos. Odeio que tentem olhar-me bem fundo, nos olhos. Disse-me que se percebia perfeitamente que eu estava muito só. Divorciado? – sugeriu. A minha resposta calou toda a gente à nossa volta, naquele bar, não tanto pelo seu teor, mas pelo bofetão que ela fez questão de me dar. Limitei-me a responder-lhe que, com efeito, cultivava a minha solidão. Além do mais – disse – não pago bebidas a pêgas! Desapareça!
Depois desse dia não voltei a ir àquele bar, ou a qualquer outro, não tanto porque tenha medo que se lembrem do meu vexame, mas mais porque não posso admitir que mulher alguma se coloque entre mim e a tua memória. E, de qualquer forma, nunca mais ninguém me convidou para ir a bar nenhum depois do emprego. Acho que há vícios que a solidão traz consigo e um deles é mesmo o de nos tornarmos amargos. Como os outros não perdoam isso, acabamos por deixar de receber convites para o que quer que seja. E além do mais eu percebo que ninguém queira uma companhia sempre de cara fechada, sempre a falar do mesmo... Irrita-me que já não queiram ouvir falar de ti. Pedem-me que te enterre de uma vez por toda, antes que dê em doido. Não percebem que estás sempre comigo. Já não aturo ninguém. Não faço fretes.
Outro dia pus-me a pensar que me poderia reformar. Ainda me faltam uns anos para a reforma completa, mas vendo a casa aqui de Lisboa e compro uma casa no campo, onde possa ter o cão que este apartamento nunca me permitiria ter. É o regresso às origens. Mas e se depois não encontras o caminho para junto de mim? Penso nisso imensas vezes, que saio desta casa e depois deixo de te ver, de te encontrar a vaguear por aí com as tuas insónias habituais. E não sei já, se sou capaz de viver sem ti por aí. Por isso é que não convido ninguém para cá vir. Tenho medo que te sintas pouco à vontade. Sei que sempre gostaste de andar nua por aí. Não quero limitar-te. Quero-te solta e irreverente como sempre foste. E quero esquecer que por vezes eras amarga e me tornavas a vida num inferno. Porque no fundo o inferno era apenas a minha incapacidade de deixar de ser egoísta. Ainda te amo. Ou por outra, amo-te mais ainda, porque és aquilo que eu quero que sejas. Ficaram para trás as discussões, as insónias e os berros. Só me lembro de ti a correr no jardim do Campo Grande com aquela saia de flores que sempre detestei, mas que te dava um ar de hippie que, por irritar a minha mãe, fazia de ti a pessoa ideal para estar ao meu lado.
Prometi a mim mesmo que vou regressar à vida. Para isso inventei um ritual. Agarrei na caixa que tenho com as infinitas fotografias que te tirei e decidi que todos os dias tiro uma. Passo horas a fixá-la até a conhecer de cor e no fim rasgo-a em mil pedaços. Conto com isto acabar com todas a fotografias e poder enfim passar a um plano menos corpóreo da tua memória. Porque se conseguir fixar todos os teus traços e expressões, não vai haver perigo de que te esqueça. É disso que tenho medo. De me esquecer da tua cara. Há histórias de pessoas que a pouco e pouco vão esquecendo as feições dos que mais amaram. Connosco não há esse perigo porque te vejo todos os dias. Mas já pensaste o que seria, se te esquecesse? Fizeste-me prometer, no meio da lamechice que nunca quiseste, que nunca te iria chorar, quando morresses. Mas chorei chorei porque no dia em que morreste entraste na minha vida como nunca tinhas estado antes.
Ontem encontrei aquela tua amiga, com quem jantavas todas as quartas feiras. Casou, tem um filho pequeno, e perguntou-me no meio de saudades e lágrimas, se já tinha refeito a minha vida. Mas refazer como, se nunca se desfez? É terrível a forma como as pessoas desconhecem a nossa relação, mesmo que lhes diga que estou bem olham para mim sempre com um toque de piedade. Faz-me lembrar aqueles filmes que sempre te recusaste a ver comigo, em que um casal em tudo perfeito (exactamente o oposto de nós dois), se desfazia pela morte de um dos dois. O sobrevivente acabava sempre por encontrar outra pessoa. Como encaravas tu o encontrares-me com outra pessoa aqui em casa, profanando aquele espaço que sempre foi tão nosso? Tens o teu território marcado, é o que penso sempre para comigo. Não posso ultrapassar o peso da tua presença, mas reconheço que por vezes me falta o ar quando penso na eternidade desse teu estado imaterial. Sei que me rodeias mas por vezes a força para te agarrar não chega e foges de mim, correndo pela casa, brincando comigo. Tenho medo disso. Porque foges tu? És feliz?
Sabes, tenho tido, ultimamente, muitos flashes de momentos passados. Subitamente sou envolvido por uma espécie de melancolia quase cinematográfica que me faz viver um flashback e dou por mim sentado num autocarro, a caminho da universidade em Barcelona, ou vejo-me a comprar bilhetes para um cinema, em Paris. É estranho porque são momentos inofensivos e até quase agradáveis, mas depois, de repente, quando venho a mim, sinto-me mergulhar num desespero sem limites, como se estas viagens servissem apenas para me atormentarem, como que para me lembrarem que já estou parado no mesmo lugar há tempo demais. O pior de tudo é que acredito que a loucura é feita destas pequenas nuances e que começo a aproximar-me demasiado desse limiar, dessa ténue linha entre a sanidade e a completa perdição. Não sei se partir será a solução. E se tu não me seguires?
De resto tenho andado mais bem disposto. Às vezes sinto que começo a ficar maníaco- depressivo mas agora já estou melhor. Sabes como é, nem sempre o sorriso que ostento representa o que vai cá dentro (isto até poderia ser um pequeno apontamento de poesia). Cada vez me convenço mais que sou completamente desequilibrado mental, mas acho que isso até tem alguma graça. Enquanto não entrar num caminho sem retorno. Lembras-te do filme "Chocolat" com a Juliette Binoche? Pois é, lá passavam a imagem de uma mulher com fortes tendências para partir, sempre partir. Eu acho que sou um bocadinho assim. Sinto em mim um desejo incontrolável de conquista que se materializa numa sensação de falta de liberdade. Como se estivesse agrilhoado a um mundo que não escolhi, que fui impelido a aceitar. Não há nada melhor que chegar a um sítio onde não conseguimos nem pronunciar os nomes das ruas. É bom vaguear assim, à deriva por caminhos totalmente desconhecidos, ter que perguntar o caminho de volta para casa, às vezes até com gestos para que nos entendam.
Tenho escrito alguma coisa. Para dizer a verdade ando a tentar escrever um romance. Quanta pretensão, não achas? O problema é que me perco nos meandros da escrita e acabo por não saber onde acaba o romance e começa o purgante das minhas frustrações. Porque o que tenho escrito aproxima-se perigosamente de experiências que vivi e que não sei se estou preparado para as deixar sair assim. Mas faz-me bem. Ainda que nunca publique nada, tenho-me confrontado a mim mesmo com pequenas infelicidades que vêm desde a infância e que ao descrevê-las consigo finalmente começar a arrumá-las sem que me perturbem como fizeram durante anos e anos em que me parecia melhor tentar esquecer. É como se deixassem de ser minhas e passassem para a personagem do livro. Por isso agora assumi comigo mesmo o compromisso de não recalcar nada. Confronto-me com tudo. Claro que se torna francamente perigoso trilhar um caminho destes. Ficamos mais duros connosco mesmos e com os outros. E nem sempre as pessoas estão preparadas para encarar a frontalidade. Mas subitamente a mim pouco me importa começar a isolar-me porque tenho em mim a convicção de que descubro cá dentro a companhia necessária para quando ficar sozinho. Porque a solidão é inevitável, meu amor, e ninguém me convence do contrário. É o caminho natural do Homem. E depois nunca estamos francamente sós. À semelhança de Pessoa, há em mim, e acredito que em muito mais gente, formas de vida que nos complementam, que se responsabilizam pela nossa diversão. Doce loucura, poderá chamar-se assim? Tenho que partir: "Navegar é preciso, viver não é preciso, ai não".
Descobri agora que adoro o Alentejo. Como é que é possível gostarmos de um sítio que nunca na vida nos disse nada? Será possível que esteja a ficar obsessivo? Ainda mais... Lembras-te da vontade que sempre tive em ir viver para um sítio que não me dissesse nada? Pois é, no fim de semana meti-me no carro e parti rumo a essa planície dourada. Queria encontrar um convento por lá, talvez de Franciscanos que são uma Ordem com alguma dignidade. Imagino-me acabar os meus dias rodeado de uma paz conventual, com horários para comer rezar e dormir e onde não tenha que falar com absolutamente ninguém. Aconteceu-me uma coisa engraçada. Encontrei o tal lugar que tinha idealizado, um mosteiro de clausura, onde a todos os votos inerentes à condição de monge, ainda acrescia o voto do silêncio. Pareceu-me ideal. A beleza do lugar era única. No cimo de um monte, com uma vista privilegiada, erguia-se uma construção de finais do século XVII, com as suas pedras centenárias e os seus azulejos perturbadoramente azuis e sagrados. Enquanto caminhava por ali tentando absorver a religiosidade do lugar, pude reparar que por trás das grades pouco cerradas uns olhos me espreitavam, seguindo atentamente todos os meus movimentos. Em menos de nada um monge saltou o muro e veio em direcção a mim, explicando atabalhoadamente e com a velocidade de quem não fala durante séculos seguidos que ele não podia estar ali mas que precisava desesperadamente de ver alguém, de ouvir uma voz que não entoasse apenas cânticos e rezas. Foi uma conversa rápida e angustiada. Ele falava com a convicção de que estaria a cometer o maior dos pecados. Raras vezes pude pronunciar uma palavra que fosse, dada a sua fúria de falar, de soltar sons profanos. Explicou-me um pouco da vida conventual e depois tal como apareceu, desapareceu, olhando por cima do ombro como quem foge de um destino inevitável. Deve ter-se penitenciado horas sem fim pela falta que cometeu, que afinal não foi assim tão grande porque em momento nenhum ele fez menção de querer saber alguma coisa do exterior. A nossa conversa foi apenas sobre a história daquele lugar e o seu papel no presente.
Depois de ver aquela angústia, cheguei à conclusão que talvez também não seja ali que encontro a paz de que preciso. Que inferno! Preciso desesperadamente de paz! Onde estás meu amor?
Hoje arrependo-me mil vezes de não termos ficado apenas amigos, como me propuseste na semana em que nos conhecemos, quando completamente embriagado de paixão por ti, te pedi que casasses comigo. Vamos ser só amigos, disseste, bons e grandes amigos. Mas, amigos? Como gostaria de ser teu amigo, mas não posso. Não posso porque quem ama pode jurar mil vezes por dia que só sente amizade, para que, na primeira oportunidade sinta ódio, desespero, solidão, ciúme e todos os sentimentos entrelaçados com o amor. Foi por isso que nunca desisti de ti e te amei com a força de quem se agarra à vida no momento final. Amei-te por mim e por ti, porque sei que o que te unia a mim, era um misto de piedade e carinho. Agora dou-me conta de tudo isto porque nunca quis ver que o teu amor não chegava para superar o quotidiano. De qualquer modo sempre mo disseste e pior que isso, sempre fizeste questão que eu o sentisse na pele. Ainda sabes o caminho de regresso para mim?
P.S Tive uma imagem interessante por estes dias, uma imagem que pode explicar um pouco aquilo que tenho sentido ultimamente... Consegues imaginar um rio, a descer pelo seu leito, por vezes mais rápido, por vezes mais lento, dependendo dos acidentes geográficos ou quem sabe dependendo da vontade de chegar à foz? Agora imagina que na nascente desse rio está uma árvore de onde se desprende uma folha. Essa folha vai descendo sempre com a corrente, percorrendo com o rio todos os lugares por onde este passa. Por vezes vai ao fundo, submerge, mas por norma acaba sempre por vir à tona. Mas eis que um dia essa folha fica presa numa margem, uma margem que é um lugar lindo de morrer, com flores e sol e luz e cor e alegria, e de repente o mundo daquela folha que não tinha fronteiras acaba por ficar resumido àquele pequeno paraíso. A folha que sempre se mantivera verde com a ajuda da frescura da água, ao ficar presa naquela margem começa a secar e desfaz-se em mil pedaços à medida que se vai enraizando naquele lugar. Pois bem, o rio é a corrente da vida e a folha sou eu. Começo a sentir pedaços de mim a desfazerem-se à medida que me vou enraizado cada vez mais neste lugar. Sinto que o meu caminho é chegar à foz, sempre em movimento e mergulhar enfim na plenitude dos oceanos. Por muito paradisíaca que seja a margem em que estou, não posso deixar de ver o rio sempre a passar e sentir o desejo de partir com ele. Consegues assim entender porque me atormento tanto? Ando um bocado assustado com estas ideias, sabes.. Tento controlar em mim os ímpetos que tenho de partir de mochila às costas por esse mundo fora. Mas e se depois não for capaz de regressar? Por vezes tenho rasgos de grande entusiasmo mas depois há dias em que sou invadido por um pânico de que tudo corra mal e fico sem ar, como que asfixiado pela minha insegurança.
sexta-feira, outubro 03, 2003
A escuridão da chama
De olhos fechados, o mar não se ouvia.
A música em fundo, o tempo parado
Quase envelheceu, definhou
Nas nossas horas, a nossa indiferença,
Culpando-me do cansaço, da tortura da espera.
Faz-me entardecer antes do pôr-do-sol,
Quando a chama se extingue, molhando a terra ardida,
O amor que já não lembra,
Do tempo que passou, que queimou.
E nada restou, cegando-me,
Por me atrever saber o que ficara,
Sem choro nem mágoa,
Por nada, uma folha
Rodopia na penumbra
Incandescente sobre a luz, pecadora,
Na lua, onde as cinzas descansam
Na minha mão, húmida e salgada,
Tremendo, cansada,
Sem eira onde morrer,
Na vertigem da morte,
Tão perto
E a vida, marcando passo
A toda a hora.
De olhos fechados, o mar não se ouvia.
A música em fundo, o tempo parado
Quase envelheceu, definhou
Nas nossas horas, a nossa indiferença,
Culpando-me do cansaço, da tortura da espera.
Faz-me entardecer antes do pôr-do-sol,
Quando a chama se extingue, molhando a terra ardida,
O amor que já não lembra,
Do tempo que passou, que queimou.
E nada restou, cegando-me,
Por me atrever saber o que ficara,
Sem choro nem mágoa,
Por nada, uma folha
Rodopia na penumbra
Incandescente sobre a luz, pecadora,
Na lua, onde as cinzas descansam
Na minha mão, húmida e salgada,
Tremendo, cansada,
Sem eira onde morrer,
Na vertigem da morte,
Tão perto
E a vida, marcando passo
A toda a hora.
sexta-feira, setembro 19, 2003
Paris no próximo mês
Como seria Paris no próximo mês
Dois meses depois da última viagem?
Dois anos naquele bairro
Vinte anos de cá para lá da cidade
Vendo o Tejo ao fundo, desde sempre.
Em minutos de sonolência
Horas de calor no carro fechado
E tu, amando e voando em Goa
Sem saudades nem pressa de voltar.
O comboio na marginal leva-me ao oriente
Em instantes de vontade
Esquecendo o barulho
Confundido tanta gente.
O último charro já não sabe a nada que não tenha dito
Nem provado, a coca, em círculos
Aprendi contigo, o enfado das rectas
Á distância de um telefonema
Numa hora de conta para pagar
O mapa da Europa para entender.
Uma missa diária da tua ciência
Infalível, comprovada e demonstrada
Oferece o milagre
Mantém-me vivo.
Como seria Paris no próximo mês
Dois meses depois da última viagem?
Dois anos naquele bairro
Vinte anos de cá para lá da cidade
Vendo o Tejo ao fundo, desde sempre.
Em minutos de sonolência
Horas de calor no carro fechado
E tu, amando e voando em Goa
Sem saudades nem pressa de voltar.
O comboio na marginal leva-me ao oriente
Em instantes de vontade
Esquecendo o barulho
Confundido tanta gente.
O último charro já não sabe a nada que não tenha dito
Nem provado, a coca, em círculos
Aprendi contigo, o enfado das rectas
Á distância de um telefonema
Numa hora de conta para pagar
O mapa da Europa para entender.
Uma missa diária da tua ciência
Infalível, comprovada e demonstrada
Oferece o milagre
Mantém-me vivo.
Juro que não te quero ver
Mais um fotografia de Praga perdida,
No chão, deitada, sobre mim
Calada, despida, suspirando tremores
Temendo, perder-se na mesma rua.
O terceiro português suave cala-me a tarde toda
Observando as sombras mudarem de parede
E a cidade coberta de fumo
Escondendo a tua fuga apressada.
Juro que não te quero ver
Assim, como te perdi na praça de Marrakesh
Dilui-te no cheiro de tanta beleza
Refrescante e hipnótica, molhada com chá de menta.
O mar Egeu desvirginava-nos todas as manhãs
Habituámo-nos a abrirmo-nos de par em par.
Por isso, a porta, entreaberta, como sempre
Diz-te que o arrependimento não mata
Que te dispas, como eu
Que cheires o queimado da pele no quarto
Inflamável e sufocante, sem luz
A noite mais cedo num sábado de fogo distante
E de véu cobrindo os subúrbios.
Juro que não te quero ver
Mas arder com as palavras.
Mais um fotografia de Praga perdida,
No chão, deitada, sobre mim
Calada, despida, suspirando tremores
Temendo, perder-se na mesma rua.
O terceiro português suave cala-me a tarde toda
Observando as sombras mudarem de parede
E a cidade coberta de fumo
Escondendo a tua fuga apressada.
Juro que não te quero ver
Assim, como te perdi na praça de Marrakesh
Dilui-te no cheiro de tanta beleza
Refrescante e hipnótica, molhada com chá de menta.
O mar Egeu desvirginava-nos todas as manhãs
Habituámo-nos a abrirmo-nos de par em par.
Por isso, a porta, entreaberta, como sempre
Diz-te que o arrependimento não mata
Que te dispas, como eu
Que cheires o queimado da pele no quarto
Inflamável e sufocante, sem luz
A noite mais cedo num sábado de fogo distante
E de véu cobrindo os subúrbios.
Juro que não te quero ver
Mas arder com as palavras.
quarta-feira, setembro 10, 2003
O sinal sonoro
I
Ao sinal sonoro, as luzes apagam-se. Há sempre alguém que tosse. Como franco-atiradores do espírito, intrometem-se, desconcentram, odeiam o silêncio.
Há sempre alguém que chega depois, depois do sinal sonoro, das luzes se apagarem. E pede licença, como se o estrago já não estivesse feito. Desculpa por tudo, por passar à frente, por não tossir.
Há sempre alguém que fuma desesperadamente no foyer, tentando, calculadamente, tornar espontâneos os movimentos compostos, de levar à boca, um e mais outro cigarro, como se de um acto cultural se tratasse. Agitar o fumo, acenar a alguém que não se vê, lá atrás, depois da coluna, de fumo e a do teatro, para não se sentir só, para preencher o vazio que sente a seu lado.
Há sempre alguém que fica para o fim. Só fala com a personagem, porque do nome do actor não se lembra, mas assegura a sua amizade e admiração eternas.
Incomoda-me que as luzes se apaguem e o sinal sonoro não me deixa ouvir o que os teus olhos têm para dizer, o teu corpo para fazer. Incomoda-me que não te possa beijar no escuro, deixando-me espaço para te imaginar. Saber que tens a pele arrepiada, só pela proximidade. Será que tens? Será que ouves? Será que sentes? Teremos trocado o toque pelo silêncio?
II
O sinal sonoro ecoou pela estação. Uma senhora levantou-se e seguiu. Ainda consegui vê-la, acenando na janela. Consegui percebê-la dizer “ Boa sorte”.
Logo de seguida, ouvi o aviso para a minha partida. Procurei o cais de embarque, subi as escadas, degrau a degrau, sem olhar para trás. Percorri a carruagem até não poder andar mais, até ao fim. Com o comboio em movimento segui os carris até á Gare do Oriente, até se transformar num ponto luminoso no horizonte possível, extinguido-se suavemente, enquanto os solavancos se confundiam e acompanhavam as batidas do coração.
Abri a janela e soltei as fotografias, uma a uma, os textos, um a um, para pudessem voar sem se tocar, sem se aproximarem, sem se trocarem, para que perdessem o sentido. E uma a uma, um a um, voaram, pousaram, longe, para lá de mim, para lá de qualquer coisa que eu pudesse identificar.
Encostei-me ao banco. A altura da janela permitia-me acompanhar a corrida das arvores, das casas, das planícies do outro lado do Tejo. Fugia o tempo, que ficava para trás, rápido e insensivelmente neutro, sem deixar marcas ou saudade, em silêncio, sem sinais de nada. Não ouvi mais o sinal.
I
Ao sinal sonoro, as luzes apagam-se. Há sempre alguém que tosse. Como franco-atiradores do espírito, intrometem-se, desconcentram, odeiam o silêncio.
Há sempre alguém que chega depois, depois do sinal sonoro, das luzes se apagarem. E pede licença, como se o estrago já não estivesse feito. Desculpa por tudo, por passar à frente, por não tossir.
Há sempre alguém que fuma desesperadamente no foyer, tentando, calculadamente, tornar espontâneos os movimentos compostos, de levar à boca, um e mais outro cigarro, como se de um acto cultural se tratasse. Agitar o fumo, acenar a alguém que não se vê, lá atrás, depois da coluna, de fumo e a do teatro, para não se sentir só, para preencher o vazio que sente a seu lado.
Há sempre alguém que fica para o fim. Só fala com a personagem, porque do nome do actor não se lembra, mas assegura a sua amizade e admiração eternas.
Incomoda-me que as luzes se apaguem e o sinal sonoro não me deixa ouvir o que os teus olhos têm para dizer, o teu corpo para fazer. Incomoda-me que não te possa beijar no escuro, deixando-me espaço para te imaginar. Saber que tens a pele arrepiada, só pela proximidade. Será que tens? Será que ouves? Será que sentes? Teremos trocado o toque pelo silêncio?
II
O sinal sonoro ecoou pela estação. Uma senhora levantou-se e seguiu. Ainda consegui vê-la, acenando na janela. Consegui percebê-la dizer “ Boa sorte”.
Logo de seguida, ouvi o aviso para a minha partida. Procurei o cais de embarque, subi as escadas, degrau a degrau, sem olhar para trás. Percorri a carruagem até não poder andar mais, até ao fim. Com o comboio em movimento segui os carris até á Gare do Oriente, até se transformar num ponto luminoso no horizonte possível, extinguido-se suavemente, enquanto os solavancos se confundiam e acompanhavam as batidas do coração.
Abri a janela e soltei as fotografias, uma a uma, os textos, um a um, para pudessem voar sem se tocar, sem se aproximarem, sem se trocarem, para que perdessem o sentido. E uma a uma, um a um, voaram, pousaram, longe, para lá de mim, para lá de qualquer coisa que eu pudesse identificar.
Encostei-me ao banco. A altura da janela permitia-me acompanhar a corrida das arvores, das casas, das planícies do outro lado do Tejo. Fugia o tempo, que ficava para trás, rápido e insensivelmente neutro, sem deixar marcas ou saudade, em silêncio, sem sinais de nada. Não ouvi mais o sinal.
sexta-feira, setembro 05, 2003
Mar da Palha
Suave mar nocturno
Doce, soturno
Na calma penumbra, silenciosa
O horizonte finito e ausente
De margens apertadas e barcos sonâmbulos
Passando em todas as janelas da cidade
Num supremo gozo de ouvirem
Sussurros dos fogos últimos
Onde há sangue que palpita
E murmúrios escondidos
Que ainda não amanheceram com as almas deste mundo
Descalças, dançando no cais
Naufragadas na brisa sem sal.
Suave mar nocturno
Doce, soturno
Na calma penumbra, silenciosa
O horizonte finito e ausente
De margens apertadas e barcos sonâmbulos
Passando em todas as janelas da cidade
Num supremo gozo de ouvirem
Sussurros dos fogos últimos
Onde há sangue que palpita
E murmúrios escondidos
Que ainda não amanheceram com as almas deste mundo
Descalças, dançando no cais
Naufragadas na brisa sem sal.
quinta-feira, agosto 28, 2003
Horas da chuva passada
Em ti, ser é estar, em fogo,
Queimando páginas retorcidas de sentimentos
Rasgar, num só golpe, a carne que nos une,
Na noite quente, suavizada pela brisa,
Vendo a lua, na bruma centenária de uma árvore,
Amando, vociferando contra o passado,
Cruel, mas morto para nós.
Por ti, correndo em tua pele os meus dedos,
Temerosos de ferir, querendo agarrar,
Deixar fugir, em silêncio, da rua vazia,
os pássaros voando, aqui, desde o rio, sem parar,
sem um rumor de ti.
É o feroz medo de estar aqui, neste mundo, só,
Ouvindo a sala vazia ranger no escuro absoluto,
Desprovido de risos, deixando degraus vazios,
Marcados por passos ausentes,
Deixando antever o fim das horas e as horas de chuva,
Ao arrepio de quem declama como ninguém,
Por não existires, neste momento, em mim.
Depois da luz da manhã mais bonita de Lisboa,
O mar batia, saltava e reclamava da tua insolência,
Zombando de tanta inocência,
Por amares sem culpa, verdadeiramente,
Entregando o teu corpo, sem reservas.
O meu interesse por ti, sou eu mesmo,
Ancorado no mar mais profundo,
De vigia na barra às ondas do teu cabelo,
Tatuados levemente, sempre que o dia reaparece,
Descobrindo a cama, já vazia,
De movimentos de paixão, louca.
Agora, nada mais interessa tanto, nem é mais interessante,
do que o meu interesse por ti.
Em ti, ser é estar, em fogo,
Queimando páginas retorcidas de sentimentos
Rasgar, num só golpe, a carne que nos une,
Na noite quente, suavizada pela brisa,
Vendo a lua, na bruma centenária de uma árvore,
Amando, vociferando contra o passado,
Cruel, mas morto para nós.
Por ti, correndo em tua pele os meus dedos,
Temerosos de ferir, querendo agarrar,
Deixar fugir, em silêncio, da rua vazia,
os pássaros voando, aqui, desde o rio, sem parar,
sem um rumor de ti.
É o feroz medo de estar aqui, neste mundo, só,
Ouvindo a sala vazia ranger no escuro absoluto,
Desprovido de risos, deixando degraus vazios,
Marcados por passos ausentes,
Deixando antever o fim das horas e as horas de chuva,
Ao arrepio de quem declama como ninguém,
Por não existires, neste momento, em mim.
Depois da luz da manhã mais bonita de Lisboa,
O mar batia, saltava e reclamava da tua insolência,
Zombando de tanta inocência,
Por amares sem culpa, verdadeiramente,
Entregando o teu corpo, sem reservas.
O meu interesse por ti, sou eu mesmo,
Ancorado no mar mais profundo,
De vigia na barra às ondas do teu cabelo,
Tatuados levemente, sempre que o dia reaparece,
Descobrindo a cama, já vazia,
De movimentos de paixão, louca.
Agora, nada mais interessa tanto, nem é mais interessante,
do que o meu interesse por ti.
segunda-feira, agosto 25, 2003
Linha vermelha
A linha vermelha onde nos cruzámos
Perdidos e achados, reflectidos em azulejo
Ao longo do corredor, perdendo a timidez
Esquecendo pudores, esquecendo o inevitável.
A dor, talvez devassa, traça invisível
A tinta do teu coração
Esventrado, amassado
Que dói
Como veneno que corrói e não mata.
E como mata
Estar perdido, vendido ao vazio
Entregue a mares por cima de nós
Olhando outra rua na nossa.
Não nos encontrámos
Num sítio que não marcámos
Por não sabermos qual
E a linha tem muitas estações
Onde não batem corações
Que não morrem, que não choram
Que não sabem.
Queríamos alguém como nós
Não como duplicados, não como cópias
Mas como nós, numa mesma consciência
De sabermos que éramos sempre nós.
E vi que já passava da hora
Que talvez houvesse demora
E em cinco minutos um coração não pára
Por loucura ou desespero, porque sim
Só por momentos, instantes
Nos mesmos em que julguei que te vi
Na ansiedade de saber
Se virias no próximo comboio.
Não quero que venhas
Não quero que me doa de novo
Como doeu antes, a espera de quem não vem
De quem se perdeu, com intenção
Com desmesura maldade de quem escolhe
Noutra linha que não esta
Bastando outra qualquer
Mais ténue e fria,
Mostrando-me o vazio da loucura
Mesmo ali, no mesmo sítio e instante
Na mesma linha
Onde nunca nos conhecemos.
A linha vermelha onde nos cruzámos
Perdidos e achados, reflectidos em azulejo
Ao longo do corredor, perdendo a timidez
Esquecendo pudores, esquecendo o inevitável.
A dor, talvez devassa, traça invisível
A tinta do teu coração
Esventrado, amassado
Que dói
Como veneno que corrói e não mata.
E como mata
Estar perdido, vendido ao vazio
Entregue a mares por cima de nós
Olhando outra rua na nossa.
Não nos encontrámos
Num sítio que não marcámos
Por não sabermos qual
E a linha tem muitas estações
Onde não batem corações
Que não morrem, que não choram
Que não sabem.
Queríamos alguém como nós
Não como duplicados, não como cópias
Mas como nós, numa mesma consciência
De sabermos que éramos sempre nós.
E vi que já passava da hora
Que talvez houvesse demora
E em cinco minutos um coração não pára
Por loucura ou desespero, porque sim
Só por momentos, instantes
Nos mesmos em que julguei que te vi
Na ansiedade de saber
Se virias no próximo comboio.
Não quero que venhas
Não quero que me doa de novo
Como doeu antes, a espera de quem não vem
De quem se perdeu, com intenção
Com desmesura maldade de quem escolhe
Noutra linha que não esta
Bastando outra qualquer
Mais ténue e fria,
Mostrando-me o vazio da loucura
Mesmo ali, no mesmo sítio e instante
Na mesma linha
Onde nunca nos conhecemos.
terça-feira, agosto 19, 2003
Mar desfeito
O vento quente dos suspiros, queimava os olhos
Amedrontados diante a esperança, jazida
cheirando a óleo, sabendo a gritos de coragem,
esquecidos num abraço de uma vida.
Em ruínas, corações esmagados
perdidos num beijo de despedida.
Ouviam-se mais ...
E no cais, amontoavam-se os navios,
Tristes, pesados, podres,
como seria o resto do tempo,
para lá da barra, bem longe da vista,
onde fraqueza que não se evita,
e as almas escurecem e definham,
no retorno compulsivo da vertigem da terra,
perdida das mãos e desfeita no mar.
Ficámos para trás... a um horizonte de distância.
O vento quente dos suspiros, queimava os olhos
Amedrontados diante a esperança, jazida
cheirando a óleo, sabendo a gritos de coragem,
esquecidos num abraço de uma vida.
Em ruínas, corações esmagados
perdidos num beijo de despedida.
Ouviam-se mais ...
E no cais, amontoavam-se os navios,
Tristes, pesados, podres,
como seria o resto do tempo,
para lá da barra, bem longe da vista,
onde fraqueza que não se evita,
e as almas escurecem e definham,
no retorno compulsivo da vertigem da terra,
perdida das mãos e desfeita no mar.
Ficámos para trás... a um horizonte de distância.
quinta-feira, agosto 14, 2003
Querer
Onde quiseres, o mar molha-te os pés,
o sol escalda-te as mãos.
O que queres são asas de sal,
mergulhos de solidão, em dunas de conchas.
Tenta contar os grãos de areia,
ficarás feliz com uma mão cheia.
Tenta voar como uma gaivota,
e adormecerás com o vento no rosto,
e um pôr do sol eterno.
Onde quiseres, o mar molha-te os pés,
o sol escalda-te as mãos.
O que queres são asas de sal,
mergulhos de solidão, em dunas de conchas.
Tenta contar os grãos de areia,
ficarás feliz com uma mão cheia.
Tenta voar como uma gaivota,
e adormecerás com o vento no rosto,
e um pôr do sol eterno.
quarta-feira, agosto 13, 2003
Mil
Se tu quiseres, se tu deixares, passaria todo o tempo contigo,
fosse o tempo um dia, talvez a eternidade.
Mergulhava na imensidão dos teus olhos e deixava-me afogar.... não pedia sequer para me salvar.
Beberia da tua voz os comandos da minha vida,
os remédios das minhas angústias, a paz da minha alma.
As minhas mãos seria a tua segunda pele, que te arrepiaria o desejo, te confortaria no frio da dor.
Se tu quisesses, se tu deixasses, nasceria de novo, morreria mil vezes, por cada sinal da tua existência, por cada murmúrio da tua alma.
Se quisesses levar parte de mim...eu deixava.
Se deixasses... eu queria.
Se tu quiseres, se tu deixares, passaria todo o tempo contigo,
fosse o tempo um dia, talvez a eternidade.
Mergulhava na imensidão dos teus olhos e deixava-me afogar.... não pedia sequer para me salvar.
Beberia da tua voz os comandos da minha vida,
os remédios das minhas angústias, a paz da minha alma.
As minhas mãos seria a tua segunda pele, que te arrepiaria o desejo, te confortaria no frio da dor.
Se tu quisesses, se tu deixasses, nasceria de novo, morreria mil vezes, por cada sinal da tua existência, por cada murmúrio da tua alma.
Se quisesses levar parte de mim...eu deixava.
Se deixasses... eu queria.
segunda-feira, agosto 11, 2003
Alturas
É estranha e disforme a forma como sobe,
Nas alturas, nesta altura,
O calor...
Sem brisa nem prenúncio,
De chuva,
De nuvens.
Não me lembro delas nem da sombra do mar.
Delas, a minha no cais,
Picada por gaivotas,
Riscada por barcos laranja,
De um lado para o outro,
Com gente dentro, muitas, juntas,
Em silêncio.
Nestas alturas,
Verão em Lisboa,
O melhor seria não estar,
Aqui, mas noutro lugar,
Onde odiaria estar, senão aqui.
Não penso. Cansa. Não é altura.
Não é estação.
A dos barcos, de mármore fresco, só, sem alma.
As pessoas, a multidão com calor, afogueando,
Atravessando a cidade,
De outra para esta, margem,
Em silêncio, sem brilho, com reflexo.
-“Está na altura!” alguém diz certamente,
de forma estranha e disforme,
assim como se movimentam as pessoas,
e se cruzam,
como sombras no cais,
picadas por gaivotas e riscadas por barcos,
na cidade, sem alturas para falar, sem alturas para se ver.
Está calor e não é altura para pensar.
É estranha e disforme a forma como sobe,
Nas alturas, nesta altura,
O calor...
Sem brisa nem prenúncio,
De chuva,
De nuvens.
Não me lembro delas nem da sombra do mar.
Delas, a minha no cais,
Picada por gaivotas,
Riscada por barcos laranja,
De um lado para o outro,
Com gente dentro, muitas, juntas,
Em silêncio.
Nestas alturas,
Verão em Lisboa,
O melhor seria não estar,
Aqui, mas noutro lugar,
Onde odiaria estar, senão aqui.
Não penso. Cansa. Não é altura.
Não é estação.
A dos barcos, de mármore fresco, só, sem alma.
As pessoas, a multidão com calor, afogueando,
Atravessando a cidade,
De outra para esta, margem,
Em silêncio, sem brilho, com reflexo.
-“Está na altura!” alguém diz certamente,
de forma estranha e disforme,
assim como se movimentam as pessoas,
e se cruzam,
como sombras no cais,
picadas por gaivotas e riscadas por barcos,
na cidade, sem alturas para falar, sem alturas para se ver.
Está calor e não é altura para pensar.
quinta-feira, julho 31, 2003
O torpor esquecido
Vem a mim
o prenúncio do mundo.
Reticente,
suspirando magoado
da calmaria da luz...
Volátil, efémera,
a premência fugaz,
o torpor esquecido
de amar...
Eterna procura frustrada,
audaz de intenção
de altiva atitude,
sobranceira
mas triste,
negando o seu reflexo,
soletrando magnífico e vil
a pena de estar só,
aqui...
Na cidade vazia de Agosto
por margens iluminadas
o lusco-fusco das ausências.
A noite quase queima
os horizontes indistintos,
os caminhos da tua alma...
Sem rumores nem os queixumes,
ténues e opacos,
não vislumbram
as incertezas e os medos,
descobertos,
decifrando,
o outro lado do mundo.
Vem a mim
o prenúncio do mundo.
Reticente,
suspirando magoado
da calmaria da luz...
Volátil, efémera,
a premência fugaz,
o torpor esquecido
de amar...
Eterna procura frustrada,
audaz de intenção
de altiva atitude,
sobranceira
mas triste,
negando o seu reflexo,
soletrando magnífico e vil
a pena de estar só,
aqui...
Na cidade vazia de Agosto
por margens iluminadas
o lusco-fusco das ausências.
A noite quase queima
os horizontes indistintos,
os caminhos da tua alma...
Sem rumores nem os queixumes,
ténues e opacos,
não vislumbram
as incertezas e os medos,
descobertos,
decifrando,
o outro lado do mundo.
sexta-feira, julho 25, 2003
Palavra que se avista
Um sopro de alma, o que uma palavra dá,
textos como folhas de outono,
Páginas sem vida, formas que dão vida,
Sem o querer de querer, não se importam de dar.
Milagre, mito de invenção, fugaz imaginação,
labirinto de saudade, falta de vir a ter.
Lágrima voraz, riso sem contenção,
coração partido, dor manifesta, exige a sua parte.
Mar, o meu mar, a vista que se avista,
viagem sem tempo nem horas de chegar,
malas vazias de partida, vagando sem parar.
Um sopro de alma, o que uma palavra dá,
textos como folhas de outono,
Páginas sem vida, formas que dão vida,
Sem o querer de querer, não se importam de dar.
Milagre, mito de invenção, fugaz imaginação,
labirinto de saudade, falta de vir a ter.
Lágrima voraz, riso sem contenção,
coração partido, dor manifesta, exige a sua parte.
Mar, o meu mar, a vista que se avista,
viagem sem tempo nem horas de chegar,
malas vazias de partida, vagando sem parar.
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