Ao fim de cada noite
Ao fim de cada noite era outra pessoa que cruzava as portas do teatro e se dirigia a mim. Era outra pessoa que me dava o mesmo beijo todas noites, naquela rua estreita e corrida a vento, que adormecia com o passar das horas até ao silêncio possível da cidade. Era por outras que perdia a conta aos cigarros e às pessoas que trazias contigo, todas as noites, em ti, e não sabia bem explicar ou esclarecer as minhas dúvidas quanto à aceitação ou recusa da existência delas na minha vida.
Não vivíamos sós. O 4.º andar da Rua da Prata era abrigo para muitas penadas de escrita, tinta sacramentada no papel desvendando dramas difíceis de suportar e impossíveis de controlar em quatro meras divisões, num único espaço, numa única pessoa. Estavam lá a toda a hora, falavam, cantavam, gritavam, beijavam-me, faziam amor comigo, sexo, sobrepunham-se ao rumor do trânsito nas ruas. Mais presentes e pressentidas que fantasmas, arrastavam os dias como se fosse natural que tu fosses elas.
No dia em que peguei nos teus papéis e os atirei pela janela, não estavas lá. Nem hoje sei. Não estarias só. Estarias demasiado enebriado com tanto conhecimento, tanta experiência e pensamento numa só pessoa que te esqueceste que eras só uma, tu, só com tanta demência, louca por tanta oportunidade, viver de uma só vez todas as emoções de uma vida. A tua sede de viver a representação atingiu contornos para além do imaginável. Passaram a ocupar todo o teu espaço, sem margem para perceberes, na realidade, a existência de uma realidade.
Noutra altura rasgaria as tuas vozes, as tua caras, com pressa de as não ver ou ouvir, a cada instante, a cada interminável segundo. Naquele dia, reuni cada um deles, os teus papéis espalhados por cada canto da casa, como que vigiando, como que deixando companhia para a minha solidão forçada e juntei-os num enorme monte, metodicamente empilhado. Abri a janela e, um a um, tive o prazer de ver voar cada um deles, desde a janela à rua, ao rio, sendo definitivamente esquecidos em outros, mais banais, no chão, sujos e amarrotados. Podia jurar, que mesmo assim, os ouvi rir.
Soubeste do sucedido porque voltaste mais cedo e assististe ao meu deleite indisfarçável. Não me apercebi da tua reacção nem da tua presença.
Não voltarias. Estarias mais dois meses em cena, no teatro ou em qualquer rua batida pelo vento, acabando de te destruir e esquecer nas personagens que promoveste, criaste e levaste a viver contigo, anulando-te irremediavelmente.
Dos teus papéis, guardei apenas dois. Duas poesias escritas há não sei quanto tempo, quando ainda eras tu, representando a tua vida e a imagem que eu tinha de ti, quando vivias comigo. Só nós dois, ao fim de cada dia.
sexta-feira, novembro 21, 2003
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