quarta-feira, novembro 19, 2003

Sobre a nossa cidade

O barulho dos carris despertou-me, finalmente, de um estado de apatia e sonolência, desde que deixei Barcelona e Madrid para trás.
Na confusão das malas na saída, a minha prendeu-se com a seguinte, de uma forma inexplicavelmente complicada, impossível de soltar. Recordei-me de Agosto nas Ramblas, tu e eu, como nunca, para sempre, desse por onde desse, quando prometemos nós em troca do mundo, por nada que nos separasse.
Acabei por chegar a um acordo, como sempre. Tive de partir a partir a pega da mala, nada de novo, para que tudo voltasse ao normal. E sem me conseguir conter, acabei a chorar, a ver os quadros das chegadas e partidas desfocados pelas lágrimas, sem ver a porta de saída, sem ver nada.
Não consegui fechar os olhos no táxi, pressentia os lugares, cada vez mais próximos, uma ansiedade que me rebentava o peito, de tão grande que era, que me dominava, impedia-me de pensar com razão, nas razões que me fizeram voltar, porque razão deixei Barcelona, porque motivos voltei a Lisboa, depois de tudo o que tive de fazer, deixar de fazer, omitir, mentir, desistir, só para perseguir um sonho, o nosso, contigo, noutra cidade, distante, mas não muito, diferente, mas não o suficiente.
Quase me esquecia de dizer que não era aquele o caminho, que era outro, que não ia para casa, a minha, que depois foi nossa, que agora não existia, a casa que vendi depois de lhe termos pegado fogo numa louca festa de despedida, muito bebida, muito inconsequente, muito nossa, ao som da música que agora mesmo passa no rádio do táxi.
Decidi sair na Baixa, na Rua da Conceição. Um eléctrico barrava-nos o caminho, preso num trânsito infernal, mas normal de tão habitual que era, como as tuas desculpas, as discussões por nada, que eram tudo e por tudo que não era nada. Mas ficavas tão bem, com cara quase a explodir, que ria sem parar. Como se fosse uma fuga à rotina que, forçadamente, querias que entrasse pela janela. E eu não percebi. Ou não quis....
Preferi fazer o caminho a pé até ao Hotel no Chiado, com a minha única mala. O resto ficou na Plaza de España, onde esperei que tivesses a decência de, pelo menos, me levar à estação, quanto mais não fosse para te veres livre de mim, para teres a certeza que me ia mesmo embora, como se me levassem de limousine para a forca, enquanto secretamente, clamava por misericórdia.
No passeio estreito, esbarrava em toda a gente, mas ainda tinha tempo para ver aquelas lojinhas antigas, onde nos cruzámos pela primeira vez, onde desesperei perante a hipótese de um amor não correspondido. Era também aqui que costumávamos comprar botões, tecidos, chapéus para os fatos de carnaval, onde tiraste as tuas primeiras fotografias.
Da última vez que cá viemos, já tínhamos decidido sair de Lisboa, crescer noutro sítio. Improvisámos uma festa de despedida, a mesma que terminou com a entrada fulgurante do corpo de bombeiros no apartamento, acabando com o que ainda não tinha ardido e com a sobremesa que ainda não tínhamos comido.
Cada loja era um ano que estávamos juntos, que crescemos, quantas festas fazíamos, apenas para comemorar o facto de estarmos juntos, a divertirmo-nos, quando cada ano era o nosso ano, quando cada ano parecia ser todo o tempo, como se fôssemos apresentados todos os dias, a nós mesmos.
A chapelaria. Nela percebi que não podia gostar de mais ninguém senão tu. Que no meio da multidão escolhia-te sem pestanejar, que por mais que provasse todos os chapéus, apenas um me assentava, como se tivesse sido feito para mim. Mas para ti, não era isso. Alguém disse que existia tanta beleza no mundo que sentia que não conseguia aguentar. Eras tu. E isso, mal ou bem estava para sempre naquela fotografia. Nós estamos nela.
Subi a rua, subi as escadas do hotel, tentando esconder-me, guardar o medo que tinha, vergonha de que a minha fraqueza se espelhasse cá fora.
Entrei no quarto, fechei a janela para a rua, deixei de ouvir a multidão, escutei o meu coração ecoar nas paredes nuas, brancas e lisas, diluindo-se lentamente na escuridão. Deixei apenas o candeeiro aceso.
Abri a mala e espalhei tudo, rasguei, baralhei e voltei a dar, tentei desembrulhar o novelo em que estavam feitos os meus pensamentos.
Olhei as fotografias, os papéis, tudo o que acabou por ficar de nós. O que escrevi para ti e não te dei, por achar que não existia nada que se comparasse ao que eu sentia, as fotografias que tiraste, só a pessoas que não nós, e que roubei da tua gaveta, por ser a única coisa que guardavas com carinho, por as amares mais do que a mim. Tirei por saber que estaria a tirar parte de ti.
Doía-me amar-te tanto, e lembrar-me de tudo o que não eras tu, consumir-me em quase loucura, porque eras quase o mundo, todo, e tudo o mais que eu imaginava, flutuando sobre a nossa cidade, tentando voar de mãos dadas.
Mas esqueci-me de ti, e eu, lembrança efémera, que ardeu contigo, consumidos em fogo ardente, avassalador. Vazios de tudo e cheios de nada, definhamos por momentos, intermináveis, tentando saber quem éramos, se sozinhos, se tocando o rio com as nossas mãos, limpando os salpicos com beijos.
Dei-te uma parte de mim em troca de uma parte de nada.
Chorei. Tive saudades da inocência irremediavelmente perdida.
E descendo o rio, não eras tu ao dobrar da esquina, era eu, nascendo naquele momento, renascendo de cinzas, já esquecidas e agora voando, com o vento,
sobre a cidade, como nós.

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