terça-feira, abril 06, 2004

OUTROS AUTORES

Música numas escadas
por Pedro Rapoula



Sento-me numa qualquer rua do Chiado.
À volta
as pessoas passam indiferentes à minha presença
à minha solidão.
Sentei-me porque um músico toca guitarra
sem perceber
que me atinge fundo,
muito fundo.
A música penetra-me
e eu fico sem saber exactamente onde estou,
se em Lisboa,
se numa qualquer rua
de uma qualquer cidade…

Agora parou.

Fuma um charro
com dois miúdos que também já o escutam
há algum tempo.
O silêncio de volta à rua devolve-me alguma lucidez.
Volto a perceber que estou em Lisboa,
que estou sozinho,
que tu partiste
e que a vida se reorganizará na tua ausência.
Conversam agora animadamente
enquanto partilham o tal charro.
Tenho vontade de me juntar a eles,
a fumar algo que me faça esquecer a minha dor.
O vinho que bebi ao almoço começa a perder o seu efeito
e eu não quero estar sóbrio.
Há demasiado sol e
é demasiado cedo
para ficar consciente.
É na minha consciência que me torturas.
É na minha consciência que a tua falta dói mais,
a segurares-me,
a compores-me,
a insistires para que fosse sério ,
adulto,
bem comportado.

Recomeçaram a tocar.

Quero voar nesta música.
Quero sentir que não estou de facto aqui,
que posso estar em qualquer lugar.
Quero fugir de ti,
de mim,
de tudo o que me prende ao nosso mundo.
Quero estar só,
ficar só,
dormir só,
mas morro de medo da minha solidão.
Morro de medo da tua saudade…
Quero viver sem ti
e não sei.
Quero respirar fundo
e serenar
por te saber ausente,
como se esta tua ausência não me fosse destruindo por dentro.

A música continua a percorrer-me.

Sinto-me assustado.
São ritmos quentes,
que me atiram à cara as recordações de ti,
que me transportam aos teus pés.
Ouço o rio a correr,
lá longe,
e de súbito,
os minutos passam por mim
com indiferença,
como se o meu sofrimento pouco importasse.

Estou cansado.
Quero viver sem ti e não posso.
Quero possuir-te e odeio-te.
Quero tocar-te e não suporto ver-te.




e o mundo acabou
por Pedro Peralta



E o mundo acabou. Sobram as páginas pisadas, as páginas escritas, as páginas deixadas, as páginas em branco. E o mundo acabou, e sobrou um pouco dessa poesia moribunda na praia do teu olhar, ficaram essas palavras errantes que soletras e vives sem pensar, sem sentir.

Quando o fim acontece o começar rejuvenesce. As cinzas, as cinzas e o caos, as sílabas perdidas, os amores deixados, a saudade que virá nos amores deixados.
Ao começar, em cada novo começar, o fim não existe. Começar é ser criança, é ter a infância em cada gesto, na brandura de cada movimento, é ter tudo de tudo, é despertar, despertar e sentir como bom é com o paladar adornar a aurora, é tomar a brisa fresca pela mão e dançar até o sol nunca se pôr, é saber que o fim não existe. O fim não existe, sussurrei eu de mim para mim ao saber-me não criança. E fim não existe, o começar é que rejuvenesce... Ah... O começar é que apetece!

Estas linhas,
O rio que nelas corre, o rio que delas corre e desagua num rio que é a paisagem dele mesmo, um rio que corre e é maior que o mar que o faz, que o mundo que o é.
As palavras e os barquinhos, as palavras como barquinhos a flutuarem no pensamento e a naufragarem na Poesia, nos poemas onde nasce o nascer, as afundarem-se eternamente nas páginas destas linhas.

Que o fim não traga as lágrimas por o ser, que reste uma melodia de sempre nesse teu sorriso de Outono e primavera, e primavera.
As pétalas das flores dos campos que se perdem no longe do horizonte infinito a voarem e a florirem novos campos e novas flores, e flores, e flores; As palavras que teço a marcarem o compasso de uma canção que compus para te olhar pela ultima vez e gritar-te até amanhã, para te olhar PELA ULTÍMA VEZ E GITAR-TE ATÉ AMANHÃ.

Este sorriso que me invade
E inunda os olhos: que ele me possua para sempre, para eternamente sempre.
Adormece nas linhas que te ofereço mar/caderno/paixão. Vive, Voa,
Até amanhã, ATÉ MANHÃ!
As tuas asas: o infinito, o infinito, O INFINITO: és eterno.


Filho
por Pedro Guilherme-Moreira




A mão dele ainda cabe aberta
Na minha mão fechada.
No dia em que não couber,
vou em busca do abraço
que encerre em mim uma volta.
O olhos dele ainda brilham
nas frestas do olhar do pai.
No dia em que não brilharem,
buscarei em mim o véu
que lhe devolva o horizonte.
E os seus ouvidos vibram,
desaguando os meus passos.
No dia em que não vibrarem,
vou em busca do silêncio
que me deixe ouvir os seus.
Enfim, um dia, o meu filho,
não vai querer um beijo meu
à porta da sua escola.
Nesse dia, a ternura
que docemente traduz
a violência pura
do amor,
vai sentar-se na mão,
a mesma mão
que em si lhe fechava a sua,
e descansar
sobre o seu ombro,
calada.
Se ao menos nesse dia ele deixasse
fechar sobre si o abraço...



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