Não consintas que eu seja
Carrasco que te sangra,
Que te minta para te ganhar e perder,
Que te aplauda ,
Que te aprecie no agora e no depois,
Que te lembre a ilusão e a glória,
A verdade,
Que te rogue preces, pregões, pragas e insensatez.
Um espaço confidente dos pensamentos do autor, aberto aos insuspeitos guardadores de segredos do espaço cibernáutico. Depois de "As Vozes em ti", publicado em 2005, e de "Furor das Noites Cheias", em 2006, com participações do fotógrafo Paulo César, surge em 2010 "Heróis", com ilustrações de Paulo Calhau e a fechar a trilogia. Á venda nas livrarias e em www.wook.pt
Desconsolo
Talvez nunca mais
O teu olhar fugitivo perderá passos no meu alcance,
Deixará destroços no meu porto
Onde nada existia e tudo acontecia,
Na sombra mascarada dos desejos ocultos,
Mergulhados nos baixios que ninguém conhece.
Talvez, outra vez,
Nos diluamos no desconsolo e na solidão
Como margens abandonadas sem brilho
Esperando consolo e absolvição.
O canto do muezim
No mais puro encantamento,
Nem o silêncio quebra o despertar do horizonte
Ressoando nos pensamentos adormecidos
Dos mundos que se abrem todos os dias
E se fecham, incógnitos,
Indiferentes e insuspeitos ao dançar das sombras.
É da paz, a virtude de se poder amar as coisas divinas,
E do crepúsculo, o renascer do impulso de mais querer,
Sentir as palavras suspiradas pelo acordar da cidade,
Quase imperceptíveis, quase irremediavelmente distantes.
Só os pássaros ousam rasgar os restos da madrugada,
Como se nada fosse senão o mais belo dia que se respirou,
Mesmo que de olhos e alma descansando,
Escondidos de si e da sinuosa tarefa de inventar palavras e línguas,
Que se justifiquem descrevendo o agora.
E por outra vez,
Antes do irromper do rumor das ruas,
Ouve-se no mais simples vocalizo,
O calmo renascer da consciência do mundo.
A edição do mês de Junho de 2007 da CAIS debruça-se sobre o estado da poesia em Portugal e reflecte sobre os desafios deste género literário num novo século.
Sob o lema "Poesia - filha de um Deus menor" são entrevistados Gonçalo M. Tavares e Daniel Costa-Lourenço, sendo apresentados poemas dos entrevistados e de Fernando Pinto do Amaral.
A não perder.
(Jürmala - Letónia)
O céu, afinal
Alcançarei o céu, ainda,
No voo silencioso do vento,
Que vagamente flutua
Entre o poente e o levante
Num beijo fundo e intenso.
O céu, afinal
Permanece incólume,
Indiferente aos tombos dos fugitivos,
Marinheiros solitários
Amantes das mil certezas,
Procurando cair noutros braços.
Ne cherche pas les limites de la mer.
Tu les détiens.
Elles te sont offertes au même instant que ta vie évaporée.
René Char in “Poèmes des Deux Années”
Dei dois mares num suspiro
Fugindo o tempo num abraço
Aquecendo o corpo noutro beijo,
Afastado o silêncio nos ruídos
De portas e vozes abertas
Á respiração dos nomes das coisas,
Ressoando, quebrando a vastidão das almas desconhecidas,
Em ímpetos de paixão ofegante.
Dei o mar às palavras que me afogam
Vagas,
Tesouros naufragados, inacessíveis como os medos,
Esclipes no breu da cegueira,
Água lisa infinita da inspiração,
Mergulhada nas estrelas.
Abre-se o abismo no promontório despido
Pelo vento e fúria clamorosa do que já não se ouve,
O que se perde em cada momento de primavera,
Em cada dia maior de verão.
Juntam-se os mares da terra em outras vozes,
Deslizam os barcos no sossego límpido do estreito.
Respiro, enfim, livre.