sexta-feira, abril 29, 2005


O escuro da maré

Manto de algas errantes
Viajam altaneiras na crista, riscada a giz,
Imitam desenhos erráticos em ardósia líquida.

Os gritos ressoando nas paredes marginais,
O silêncio ecoando
Ameaçador sobre os vultos contrastantes na rocha,
Deitados num embalo esboroado e velho.

A angústia fustiga, perfura abaixo da pele,
Amacia as arestas da dor, em valsa lenta e triste.
O aguçado engano de medir o tempo em eternidade,
Engenhosa mentira, disfarce
Da dor cravada em arpão e ferrugem,
Surpresa.

A chaga aberta, para sempre inquinando as manhãs
Sempre que adormeço e acordo
Ouvindo o lento e escuro sonoro da maré,
Extinguindo-se sem brilho nas pedras,
Lambendo os pés sujos da cidade
Sem ruas e sem gente.
O tempo acaba quando morre o mar.

terça-feira, abril 26, 2005


Estio

O estio cola-se ao corpo ao som da rembetica em mais um Agosto febril longe de casa,
correndo os recortes mediterrânicos do Egeu, as madrugadas na tua língua acendida na proa do nosso espanto, como um farol onde começamos e acabamos.
Transpiramos ouzo à sombra da colina, descortinando a cidade imensa diluindo-se no calor do asfalto, presos na pele, em sufoco.
Luzem os corpos queimados, em sopro quente de verão nas ascendentes e descendentes de Kolonaki. Ombros descobertos, emudecidos no relento, escorrendo dos poros travo a fogo ateado, nuvens ardentes esfumando-se nos parapeitos, fluídas como vagas, como um dia qualquer, como sempre.
O mar ainda é longe e o ferry não espera por nós, para cortar o vento e as águas até às ilhas. Donos dos caminhos que serpenteiam, em sangue, como veneno, esperamos a brisa da tarde e o silêncio das cigarras, voando até nós como pássaros extraviados na quente planura de Atenas.

sexta-feira, abril 22, 2005


Pássaros (migração)

Esta dormente e insidiosa febre compassada,
Um perfeito bater de coração semanal,
Ritmada ânsia acompanhando o lento desenrolar das horas...

São talvez às dez horas os prenúncios de todas as sextas feiras.

Despida a pele dos medos e inseguranças,
Cumplicidades e mentiras tão narcóticas como os outros,
Pássaros sem lucidez
Migrando sem pouso do rio à cidade alta,
Sorvendo corpos em descoberta nudez citadina,
Na vertigem e delírio da exaustão nada acidental,
Breve fascinação furtiva.

Aproxima-se as manhãs arremessadas de véspera
E estamos já sem tempo antes delas.

segunda-feira, abril 18, 2005


Fotografia (música na casa)

Descobri a fotografia,
Imaginada,
deitada sobre a mesa,
esquecida a vontade que não me assiste,
adivinhando o tacto perdido, insensível,
a anca, a perna, esquecidas,
varrendo e mostrando as formas,
a tua boca húmida, prometendo
a travessia de um deserto no teu encalço.

A sala de água imensa,
amar em pele sobre a pedra,
em breve vertigem,
saliva e sal em desejo animal, cobrindo-te
em amarras fortes,
a voz atada num gemido fundo
sumindo-se na luz que nos atravessa sem pudor,
de vigia ao Porto dormente que desperta
no veludo do azulejo azul e branco,
quando finalmente a noite se recorta em foguetório,
acesos os corpos como um corpo qualquer,
flamejando com a música.

terça-feira, abril 12, 2005


Coisas da alma

Pássaros dormem ao vento
Ao som das águas costeiras,
Sussurrando palavras lúcidas, coisas da alma,
Nas alturas em que nos calamos como fantasmas
Com tempo para a solidão,
Sem silêncios incómodos,
Esperando apenas o fim da tarde.

Olhares outonais, seguem as voltas de um barco, sobre si mesmo,
Pensando e respirando como poucos,
Embriagados,
Ouvindo o deslumbramento, a cada nota cantada,
O som flutuante da maré subindo o cais,
Cobrindo a areia escura da margem.

A leve e insidiosa brisa do norte
Volteia e desfaz, em riscos, a planura do rio,
Mistura e espalha, cores e borboletas extraviadas,
Assinala a espuma que se esvai com a corrente,
Prega-nos as mãos, uma com outra, fixas
Na madeira podre e húmida do varandim,
De coração apertado, ansiando rebentar em fogo de fim de ano.

A luz escapa-se para as margens, renascendo,
Deixando-nos suspensos sobre a torrente que não se vê,
Acalmando, refreando a vontade de mais um beijo,
Olhos encontrando-se, brilhando...

As luzes na ponte dizem-nos que já escureceu.

Estranha manhã

(lá longe)

Estranha manhã aquela,
Quando o tempo mudou e as torres caíram
Sem o fascínio dos gestos teatrais
Numa vulnerável representação da aridez,
Uma alucinação promíscua,
Sem prefácio nem epílogo,
Subversão bizarra, sem sentido.

(aqui, tão perto)

A leveza grave da palavras, em desvario,
Perdendo-se nos jardins esquecidos
Abrem-se escancaradas, oferecendo-se,
Devorando-te sem quartel
Dedos de pó branco marcando os passos,
Implodindo, viscerais,
Escrita de seda, envolta em ti.

segunda-feira, abril 04, 2005


Alquimia

Amantes, abrigados debaixo do assombro,
Em surdina,
Acreditando em mais nada
Que o tempo esculpe-se no deslizar dos corpos,
Mármore alisado pelo toque, almejando
A poesia contaminada, subvertida
Em combustão lenta, deliciada, reinventando-se,
Alquimia de limalhas de ouro, soltando-se,
Libertando trechos de uma melodia,
De matizes escorreitas e ténues,
Risos feitos de bocados de céu,
Sem espaço às palavras.

Amantes, escondidos do medo,
Em silêncio,
Acreditando sobretudo na perda,
Que o arrepio seja ilusão, descuido,
Parando o tempo, mostrando a crueza,
A dureza fria da revelação, sentida,
O ouro mostrando-se pedra escura,
A paixão consumida, consumindo-se, apagando-se
A cinza espalhada com um sopro, desfeita
Sem rasto ou memória infame,
Esquecida.

Amantes, querendo,
Temendo o esquecimento.

sexta-feira, abril 01, 2005


Que os dias caíssem (outras horas)

As horas já não são as mesmas
e eu espero, no silêncio,
fugindo mais depressa do que sou capaz.

As horas, apressadas, desgastando
os trilhos que invento, os atalhos
nos escritos subindo a colina,
zunindo nas curvas,
perdendo-se na devoção de parar o tempo,
a cadência dos barcos, a simetria das ondas.
O compasso não muda,
insurge-se,
a ânsia, à espreita, tremendo nos lábios.

Disseste que chegavas a horas…

Foi só esperar que os dias caíssem
e se levantassem sobre os telhados abaixo de nós,
uma única vez.

Sem querer, as coisas mudam,
hora após hora, todos os dias.
Esqueci-me que a cidade não é a mesma,
devassada,
descendo a colina nos dias esquecidos,
nas mentiras de corpos transpirando o amargo dos químicos,
imperceptíveis, sôfregos,
sangrando os passos sem retorno,
o andar lento despenhando-se.

O atraso perpetua-se.

*

Inevitáveis, os teus cinco minutos,
arrancados em pêlo, dolorosos
implodindo e irrompendo,
o tempo, o suficiente para nada fazer,
subir o comboio na estação, na hora marcada,
o Oriente iluminando-se, as velas e as árvores,
a nova Lisboa acordando,
deixando-me solto, levado pelos ponteiros,
seguindo incansáveis a sucessão de outras horas.

No escuro, ao fundo, deixámos de bater...