sexta-feira, fevereiro 27, 2004

Lixo


Se a noite enganou
A manhã veio desvanecer de qualquer dúvida.
Em tinta escura, sujando os dedos
Ou ao sabor de uma estranha melancolia
Uma banda sonora dissonante de sussurros e zumbidos
Mostrando um espólio de luminárias
Capaz de incomodar.
E num instante que é breve,
Num franzir de sobrolho,
Uma narração insólita de sombras,
De tudo aquilo que vem à cabeça...
Queima como gelo um desprezo tão determinado.
Ironia da ironia,
Inteligência de quem mexe ao sabor da inquietação,
Tudo é apenas uma coisa:
Doce morfina derramada que nos sacia
Em pequenos espasmos
Cuidadosamente administrados,
Como intrigantes viagens sem amplitude no tempo.

*

"Há dias em que julgamos que todo o lixo do mundo nos cai em cima”
Eugénio de Andrade, in Lugares do Lume


quarta-feira, fevereiro 25, 2004

Exuberâncias dos infernos ao crepúsculo



Um sorriso amargo, esboçado sem convicção,
Perante a infinita tristeza das fotografias de pontes sensíveis,
Testemunhos cegos de um universo tortuoso,
Abordagens retorcidas e estilhaços
Cravados, sem aviso, nos meus pesadelos.

Um sorriso amargo, escondido,
Perante os desejos sublimados,
Os devaneios febris da vida sem sentido,
Perdidas em desertos nocturnos de aridez profunda,
Em páginas de cinzento escuro nas mãos.

Um sorriso amargo, fingido,
Esvaindo-se em cansaço e abandono,
Cedendo à morbidez fluida e aberta de respirar o mundo dos suicídios,
Perder o sono com estranhos, sem os ver,
Sem ter coisas para dizer,
Prolongando o absurdo,
Forçosamente divagando sobre as nuvens negras destes dias.


Esquecendo-se...

No rio,
A madeira apodrecia ao sabor das vagas
sem queixumes ou alaridos de nota,
presa às margens por cordas que já não estavam.
O barco jazia sozinho,
descobrindo-se ao ritmo das marés,
esquecido, esquecendo-se.

Chovia e o frio era o mesmo,
o arrepio de Janeiro que não cessava,
fustigando a varanda, batendo furiosamente na janela,
os algerozes lançando esguichos de água e folhas,
inconsoláveis precipitando-se no passeio.


Em mim,
no desespero,
perdi os sentidos gritando,
por não ter movimento nem autonomia,
por ser em mim a minha prisão,
o meu carcereiro escondendo a luz,
fechando as portas.
Os passos na escada,
distantes, cada vez mais,
aliviados e temerosamente mudos.

Calaram-se as vozes, receando
a tempestade próxima que se avizinhava,
o céu, escuro e ruidoso, ameaçando cair sobre nós,
sobre os que desprezam quem é livre,
sobre os que não sendo, desprezam poder ser.

Não se ouviram mais palavras.

Na avenida sobre o mar,
os prédios ofuscando a manhã,
escondendo-se nos vidros, o reflexo.
pintando o rio perdido nas esquinas,
ondulando nas paredes em pedra,
dizendo-me para seguir,
para continuar a caminhar.

Ao longe o barco definha nas águas turvas do tempo,
como eu,
escondido atrás dos reflexos, intransigente,
esquecendo-me que ainda o vejo.
como água



Descobri que te amava num qualquer dia,
Num jardim de ondas
A sós com a nossa visão,
Procurando as palavras que não criam raízes, não escavam feridas,
Pressentindo a nudez acústica da voz,
Nas palavras saltando esquinas de luz,
Hesitando sobre o futuro de descoberta do outro,
O irremediável desencadeando antecipações.

Nas águas turbulentas das emoções,
Imaginação faz-nos esconder atrás das coisas,
Da presença de espírito para partilhar os riscos do desequilíbrio,
Os estragos em águas turvas,
A insolência, ironia, renúncia,
A excitação desconcertante de nos deixarmos assombrar,
Observando o movimento do tempo em surdina,
Desvirginando em segredo a rebeldia embalada pela música,
A paixão atravessando a complacência com risos pirotécnicos,
Cada dia como o anterior, sempre,
Sempre que sejamos nós,
Juntos, como água


segunda-feira, fevereiro 02, 2004

a natureza da acção


O Aeroporto de Lisboa já me permite respirar, suspirar as palavras, as ultimas e derradeiras.
Sorrir perante os inebriantes enganos que já conheço, reencontrados e entregues em delírios obsessivos, outras vezes traçados pela casa, em cada divisão, em cada parte
Um corpo inteiro de volúpia, desmaios, serenos de prazer, sorrisos incandescentes e transbordantes arrancados ao suor salgado da pele, naufragando em sonhos de sémen derramado, elevando os olhos fechados ao cúmulo da abstracção, tentando não pensar, apenas respirar, esquecer o mundo por baixo, lá fora.

Sozinho na multidão de Agosto no porto de Piraeus, em Atenas, esperava-te no mundo, na secreta esperança de naufragar, desaparecer por um instante sem marcas nem gotas do mar que nos salpicaram de sal, morrer com hora marcada, antes de percebermos a realidade, o minuto seguinte à insensatez orgásmica, o único momento de sinceridade antes de acordar para a verdade que pensámos ter perdido, diluída no azul do Mar Egeu, à deriva em ilhas que descobrimos o prazer.
A tua inabilidade para perceber a genética masculina igualava o desconhecimento americano de outras culturas, mas desculpa-se, esquecia-se, esquecemos, nos inúmeros momentos quase contínuos de sexo sem limites às nossas reservas, começando sempre inesperadamente, mas acabando irremediavelmente da mesma forma. “Amo-te” , não como normal palavra soletrada, mas como suspiro aliviando-me da dor do prazer, mais forte do que eu, entranhado na minha genética.
E magoa, magoa-nos a nossa incapacidade de aceitarmos que somos diferentes.