sábado, dezembro 30, 2006


Faz-me (tempo)

Falta-me escrever outra linha,
Abrir outro vinho, mais um minuto,
Sentir outras vozes, ouvir notas batidas,
Sem parar,
Falta-me ter ilusões vezes sem conta,
Na tua cama,
Brincar com as palavras, ao café,
Dizer tudo, mais, muito, sempre,
Cansar-me, esgotar-se, matar-me,
Vezes sem conta,
As que percorro o alfabeto,
Procurar aquela letra que me falta,
Aquele riso último, derradeiro.

Faz-me falta tempo para mais, para menos, para tudo.

Sem tudo saber

Tenho-te só para mim, sem saber quem és,
Incondicionalmente, mesmo que nada acordado,
Mesmo que só agora, assim que te conheci,
Como queres, como pedes, como eu quero, como gemes,
Como esqueces e insinuas um outro “nós”, que não este,
Queimando etapas, preliminares, pressupostos,
Gozando cada subversão, cada dogma, cada proibição,
Subindo, descendo, percorrendo letras, palavras, frases,
Entrando, percorrendo a tua invisível satisfação no escuro,
Agarrando, observando, segurando, possuindo, latejando
Como se o mundo estivesse nestas mãos,
O desejo libertando-se, brilhando, claro como a lucidez de todos os momentos,
Mesmo com a tua imensa vertigem ácida
Que te faz esquecer a desolação de amanhã,
Queimando-se nos estilhaços esquecidos que fizeram esta noite.

Uso-te, sabendo que me usas, mesmo sem saber quem és.

quinta-feira, dezembro 28, 2006


Perder

Adivinho-te o ínfimo termer dos dedos junto ao peito,
O medo que se insinua num sorriso sem luz,
A atenção presa nas poucas folhas que já restam
Do Outono, lá fora,
Os teus sentidos lambendo cada nesga de movimento,
Adormecendo-me a tristeza,
E quase tudo o que me lembre, agora.

É-me difícil sentir mais qualquer coisa,
Nada dizer,
A exaustão fecha-nos qualquer livro,
Arrefece e mata as intrigas e histórias de qualquer dia
Como pinturas fortivas sem movimento.


Perdi-me a meio do dia

No fundo da rua, no fim da cidade

No dia em que enlouqueceste

quarta-feira, dezembro 27, 2006


Fecha o dia (outro)


Abre-se a janela mais uma vez
E outra, boca que fecha o dia,
Quando mais uma noite magoa ainda mais,
Sempre que mais um copo te possuía,
Mais forte, com mais prazer
Que eu, desfeito
Insuportável, irremediável,
Batendo com estrondo, o coração
Que sabe estar perdido,
Lentamente, convencido
De outro corpo que não se toca, não se mexe,
Não se sente, a morte
Em aveludado perfume envolvendo,
De mansinho, leve, fácil, previsível
Canto de sereia, inquieto, escondido,
Alucinando.

Abro a porta pela última vez.

terça-feira, dezembro 26, 2006


Sangrando

O sangue já ferve, como se brotasse fulgurante
Correndo ordenado nos limites invisíveis da estrada,
Entre palavras que adivinham a respiração
Suspensa, nas sílabas ofegantes do lusco fusco,
Adivinhando o peito dorido, massacrado,
Rasgado de separação abrupta,
Contudo cirúrgica, calculada e cruel.

O sangue já escorre,
Em rubro medo, incendiando-se,
Secando vestígios húmidos de sal,
Na boca que se calou,
Em triste uivo, cuspido.


E a estrada alonga-se num fio,
Espalhando-te pelo sossego do meio dia,
Agora que nos sangrámos sem remédio.


E o céu enche-se de nuvens em debandada.

quinta-feira, dezembro 21, 2006


E se eu não quiser esperar.

E se eu quiser não esperar,
Nem mais cinco minutos, nem a hora acordada,
Nem atrasos, onde olhássemos na ansiedade que nos espera,
No manto escuro que agora se sente,
Onde deixássemos a imaginação para outra conversa,
Onde perdêssemos todo o tempo,
Para ouvir-te comandar o meu sonho, e eu o teu,
Rasgar o meu coração de dúvidas, de fugas e ódios,
Esquecer o protocolo,
Qualquer um que agora se aplique,
que agora se exija,
E nos beijássemos, sem limites,
Tal como nos apetece, tal como nos treme debaixo da pele,
Esquecendo a vergonha que não temos, perdida.

E se eu não quiser esperar,
Nem mais um suspiro de tédio, pela relógio parado, e correr,
Atravessar a cidade em hora de ponta, enorme, instransponível,
Só para chegar mais cedo, agora mesmo,
Para poder ver-te descer as escadas, tão devagar quanto possível,
Para poder não perder o mesmo brilho que trazes nos olhos, irreal,
Que já não vejo, e beijo,
Sem esperar.

quinta-feira, dezembro 07, 2006



Depois de "As Vozes em ti", foi apresentado no passado dia 13 de Dezembro, "Furor das Noites Cheias", de Daniel Costa-Lourenço, o seu segundo livro de poesia.

A obra conta com a colaboração fotográfica de Paulo César e com prefácio de António Garcia Pereira e Possidónio Cachapa.

"À segunda incursão pelo texto poético, Daniel Costa-Lourenço aprofunda as ideias lançadas em “As Vozes em ti”, percorrendo, com um sentimento mais maduro, as interrogações e as visões do mundo urbano, dos desencontros, das dores e euforias da sucessão dos dias, tendo sempre o mar e a cidade como pontos de partida para o que começa e acaba.
Sem nunca conceptualizar ou definir dos sentimentos que explora, assume a constante interrogação sobre o ser urbano, sobre a luta constante do indivíduo em manter-se único na sua apreensão do que o rodeia e do que o une aos demais, importem eles ou não.
Marcam as impressões eufóricas de amar, tristes, desiludidas e prementes, como se fossem as últimas, não porque acabem, mas porque nunca bastam a quem vive intensamente." EDIÇÕES ESCRITA CRIATIVA


Prefácio por Possidónio Cachapa

Este será um prefácio curto sobre um livro de poesia. O que é uma maneira redundante de dizer as coisas, porque a boa poesia tende a ser curta. Dá-se bem com a síntese, parte-se quando a tentam estender pela folha fora. É por isso que os poemas parecem estar sempre em fila. Fragmentaram-se em grãos de areia, porque não são as palavras mais do que isso: grãos de areia que alguns tentam unir, molhados com água do mar, ou com lágrimas que é a mesma coisa mas em ponto pequeno. Seguram a ideia com dedos finos, e retiram-nos cautelosamente esperando que a forma que antes só existia na cabeça, se sustente ali ao menos por um instante.
A poesia de Daniel Costa Lourenço fala destas coisas todas: do cheiro do mar que é o cheiro de um corpo, da necessidade de juntar palavras, de as dizer sem parar antes que a memória-onda as leve. “Uma investida sobre ti e as gaivotas voam rasando a água…” Fala à sua maneira, como consegue. Como todos nós. Parte a rocha dura para que a poesia se extraia. E às vezes extrai-se. E as outras, mesmo se cascalho ou suor, são fruto de esforço honesto que o tempo se encarregará de cobrir. Sempre foi assim com a poesia e há coisas que nunca mudam, como a mineração ou a pesca. Na essência, pelo menos.
Há uma ideia de água que percorre todo o livro. “Maré”, “rio”, “manhã” (cedo). Ou não estivéssemos rodeados dela em Portugal por todos os lados: pelo mar, pela chuva, pelo interior líquido que nos percorre. E há também a partida. Há sempre quem parta. Porque tudo se parte. Mesmo a gente quando se levanta cedo e deixa na cama outro corpo quente.
“A tempestade, única/Conduz ao promontório, /Veloz e impaciente (…) Todos os enganos são previsíveis…”.

Possidónio Cachapa, Lisboa, Outubro de 2006
Prefácio por António Garcia Pereira
Surpresa e Admiração, eis as palavras certas para definir a minha relação com este livro e com o prefácio que me concederam o privilégio de convidar a escrever.
Surpresa, e profunda, antes de mais por tal convite. Pública e notoriamente amante do mar e admirador desse eterno frémito de emoção que são os nascentes e poentes que ele sempre nos propicia, vibrando cada vez que revejo, uma vez mais, a célebre cena do cantar da Marselhesa no filme “Casablanca”, é sabido que não sou propriamente um cultor, muito menos um conhecedor qualificado, de Poesia.
Surpresa, depois, pela impressão, por vezes triste e mesmo desesperada, de outras vezes forte e intensa, quase vulcânica, que a leitura do livro nos vai causando e que, sinceramente, não esperava que fosse tão marcante. E, na verdade, pode eventualmente discordar-se ou desgostar-se de quase tudo nesta obra, dos temas, ou da semântica, ou da métrica, ou até do próprio estilo, Mas que ela nos toca em cordas sensíveis, nalguns casos muito vibrantes, isso creio ser inegável.
Por fim admiração, uma marcada admiração. É que numa sociedade em que todos os dias e em todas as horas se pretendem impor, como valores supremos, o dinheiro, o Poder, a capacidade de enganar ou esmagar o próximo, revela-se absolutamente admirável – para mais num país por vezes imposto como demasiado “pequenino” para nele poder haver lugar à arte, à cultura, à poesia, à sensibilidade, à emoção, ao sentimento e à paixão – que um jovem se decida atirar-se a esse seu sonho que foi, e é, o de fazer um livro de Poesia.
E é por tudo isto que, tendo logo acedido ao honroso convite para escrever estas simples e despretensiosas palavras, acho o autor da obra merecedor de bem mais do que o bastante pouco que tais palavras serão alguma vez capazes de significar.

Lisboa, 9 de Outubro de 2006