sexta-feira, agosto 06, 2004


O fogo onde todo o vento sopra





Mal ouvia o ruído da fogueira
Crescendo na meia noite do areal
Consumindo memórias do inverno em Agosto
Em sons esparsos e sem barreiras

Tu na praia
Em todas as cores
Como um relicário admirável
De desalinhada sabedoria e devoção
Fingindo minúcias
Sem vincos nem loucura
De movimentos contidos, odores intrínsecos e carnais

O meu fetiche do fogo querendo fugir
A curiosidade infantil de querer queimar-se
E rir-me da paixão
Inflamada e descontrolada
Como um incêndio de verão sem remédio
Onde todo o vento sopra.

quarta-feira, agosto 04, 2004


Tocando-me nos lábios

“A vida em certos dias não tinha a forma daquele objecto antigo
Tocando-me nos lábios com calor excessivo”
Gastão Cruz in Repercussão


Vamos fazê-lo...

Um desafio nocturno inconformado,
Qual insurreição anárquica e indomável
Soprada em palavras incoerentes, não depuradas
Suando cada riso,
Cada cabelo desgrenhado,
Blasfemando as cicatrizes assombradas
Afastando inquietação e ruído
Numa imparável calma singular
Deixar pairar o tempo como uma tragédia suspirada,
Deixar acirrar a nossa veia incendiária

E depois, rir...

Isso seria estranho,
Ser feliz em quase choro,
Adorar as nossas coisas,
Depreciá-las e ansiá-las, como antes
As coisas indeléveis capazes de mudar o mundo.

O amor mora ao lado,
De cristal imutável, valioso
Sempre esperando ser empurrado
Desajustado na razão,
Inflamado na emoção.


Sem palavras

“E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira,
Traça um semicírculo de não sei que emoção”
Álvaro de Campos

Ainda sangra e espanta
A vida tornou-se só e mais simples
Como a casa, sem quadros
As cicatrizes que eu mesmo abri
Esquecendo-me que te esqueci
No momento que passámos a ecos
E as palavras também
Que nunca mais se ouviram
Deixaram de voar com as gaivotas até ao rio
Ao fundo
Perdidas na monotonia do giro lento dos guindastes.

O Canto da água (eterno)

(a Carlos Paredes)


O abandono é difícil
como um convite ao amor e à poesia
numa súbita tarde de verão.

Sobre o fundo dançam as palavras
de pessoas que não se encontram mais
num desejo de que nada acabe nunca
experimentando memórias e a perversidade dos limites.

Uma espécie de queixume que se calou
num jardim perto de casa
num cantar lancinante de palavras difíceis
indecifrável e difícil
como a pureza da tempestade.

A aparente leveza de viver
desde sempre empoleirado na eternidade
vivendo na claridade da água
e da música que ela faz