sexta-feira, junho 27, 2003

A luz apontada ao fundo da sala

A luz, no canto, escuro, frio, rebelde, silencioso, corta a respiração, mata a luz, que se perde, fugaz, limpa, virgem, atrevida, como uma chama na floresta, um barco furando a neblina, densa, misteriosa, envolvente, no rio largo, apertado pela cidade, alta irregular, barulhenta, confusa, com muita gente, que se cruza, numa praça, sem se ouvir, sem se calar, correndo, sem parar, para sítio nenhum, para uma rua, atravessando uma avenida, norte para sul, da colina ao rio, para a ponte, voar sobre a água, sentir os salpicos ao longe, sem poder para, cansado, com sede, a queimar, de desejo, o corpo ao sol, no veráo quente, interminável, bafejado pelo sul, o deserto, aqui tão perto, poucos segundos, uma hora, em duas te conheço, em três te pertenço, rebelde, silêncio, não consigo respirar, matar o desejo, sofreguidão, amor, paixão, sexo, suor, o calor, a janela aberta, não há aragem, as palavras não fluem, não escorregam na cara, enquanto choras, triste por não teres nascido, séculos atrás, não agora, para poderes veres mais, ouvires mais, sentires mais, mais, mais, mais, como se fosses água, intemporal, transparente, verdadeira, sensível, sincera, tocando as margens, os barcos, as gaivotas que planam e mergulham, a areia que se desfaz nos dedos, que voa com o vento, que se cola na pele, no corpo, nos nossos, eu e tu, no cais, vendo o pôr-do-sol,, cantando baixinho,, ao ouvido, murmurando palavras doces, de mel, e a cidade em volta, servindo de cenário, esperando as palmas, os encores, por não querer nunca acabar, como a luz, no canto escuro, onde se perde, sumindo-se lentamente, reflectindo-se, sem sentido, perdendo-se a música no silêncio, a respiração suspensa de surpresa, como a morte, fugaz e inesperada, sem aviso, como a luz que se apaga, com um toque, atrevido, no meu coração, sem volta, inconsciente, fica para sempre, aqui, comigo, olhando o rio, pela janela aberta ao mundo, onde as gaivotas mergulham, na nossa cama, para sempre.
Apaga a luz.