quarta-feira, março 28, 2007


O céu, afinal



Alcançarei o céu, ainda,

No voo silencioso do vento,

Que vagamente flutua

Entre o poente e o levante

Num beijo fundo e intenso.

O céu, afinal

Permanece incólume,

Indiferente aos tombos dos fugitivos,

Marinheiros solitários

Amantes das mil certezas,

Procurando cair noutros braços.





Ne cherche pas les limites de la mer.

Tu les détiens.

Elles te sont offertes au même instant que ta vie évaporée.

René Char in “Poèmes des Deux Années”

quarta-feira, março 21, 2007







Sul






Sacode-se a terra no mar
Na fina poeira do nosso encantamento
Um súbito sopro cardeal
Entre a mansidão da cor inflamada.

É quente, a noite,
Enche-se a Lua nas sombras,
Mergulhado o sono
Em prantos dispersos de cigarras.






(...)imagina-nos
na aragem cuja face se distende
ao sol que lentamente se afunda.(...)

Ibn Sara in “o meu coração é árabe” de Adalberto Alves


(Marraquexe - Marrocos)


A cinza perdeu-se (voo sem ruído)


Cai-me a boca sobre o peito dorido,
A saliva apaga o ardor,
São de cinza os receios que se perdem sobre o mar.
Na vigia das árvores despidas da colina,
Adormecidas,
Sacudindo folhas e coração,
O sabor escancarado da cidade tomada sem luta,
Perpetua-se em delicado voo sem ruído,
Sem marca,
Com a impressão da musica que se perde nos gestos vagos,
Cruzando o mar da Palha.




“(...)vendo-as cair os pássaros aprendiam
o voo
antes das asas.


Carlos Nogueira Fino in “mesmo que o silêncio...”

terça-feira, março 20, 2007


Podia saber mais de tudo


Podia saber mais de tudo,
Deixar-me enredar nesses enganos,
Confiar na incerteza de outros dias.
Podia renegar-me, talvez nunca como agora,
Podia saber quem eras tu e os demais,
Fintar o futuro e o passado,
Que o acaso fosse concreto e determinado.
Podia não estar aqui,
Ser material de outra estrutura,
Escolher a chuva que me ensopa,
Queimar-me ao vento, ao sul,
Onde o sal soubesse tanto a lágrimas como eu,
Para que me esqueça delas, enfim.

É melhor assim...
O peito aberto, sem condições e tratados,
Morder o presente, sangrar,
Querer o mais difícil dos prazeres,
Esquecer o amargo das canções,
Enfim.



“Que importa o gesto não ser bem

o gesto grácil que terias?

Importa amar, sem ver a quem...

Ser mau ou bom, conforme os dias. (...)”

David Mourão-Ferreira in “Canção Amarga”

quinta-feira, março 15, 2007


Prazer


Palavra insensata
Que não se acha nunca,
Divide-se por nada e por mais se perde,
Lânguida promessa que esmorece,
Rio que seca e cresce imparável
Como se de meu sangue se tratasse.
Palavra falada que entontece
Cuspida como merece,
Insinua-se nos sulcos da língua,
Escondida na curvas da saliva,
Noutro corpo que é meu,
Recente, ausente, futuro.
Palavra indingente, silenciosa,
Caminha nas linhas de branca depravação,
Sem inspiração, arde
No sonho breve e mudo de só querer
Alguma coisa,
Apenas experimentar o meu prazer.

quarta-feira, março 14, 2007


Breve

Ouvir-te já, de olhos fechados num luto de poucos dias,
Lembrar-te da ânsia do horizonte que não chega nem se alcança,
Tocar-te devagar, na sombra da chuva miudinha que agora cai,
Seguir-te, quando a pressa de chegar já é vontade de ficar,
Descer-te à brevidade dos desejos incertos,
Gritar-te em desvario, queimando a garganta calada de promessas,
Estranho-te agora, perante o medo lascivo de querer mais,
Matar-te afinal, no tempo que foge e acorda em alucinação.

terça-feira, março 13, 2007


O que escreveste afinal?

Tu consegues, digo-te,
Escalar o céu,
Divagar nas profundezas do tédio, incólume,
Fintar a curva esguia dos vagos sons diluídos na sombra dos teus medos,
Baloiçar diante do abismo, hábito doentio,
Suspirar de fastio perante os sustos dos incautos.

Repara, dizes-me,
As manhãs desaparecem nas noites anteriores,
Os sentidos sangram e cegam,
E mesmo com volteios nas palavras que inventas,
Escudas-te opulência da decadência,
No luxo desmedido de não te preocupares.

Desejos errados, olha bem,
Corpos arfam em angústia,
Padecendo de nada sofrer,
Quanto a coisas que nunca fizeram,
Mas insistem,

A terra segue girando,
Nao faz mal, dizes,
A mim faz-me, digo eu,
Porque ninguém se lembra de nos ver passar, nunca,
Nem agora.

Fundimo-nos afinal, com outra manhã que matámos.
O que escrevemos afinal?
Na tua colina



Entrega-me a minha metade do teu nome escrito na cidade,
O corpo dividido em muitas margens,
Impossíveis de alcançar,
Irremediavelmente perdidas na dança eterna das ondas,
No perfume suave do poente,
Acendendo o burburinho da noite.


Demora-se quem passa nesta colina,
Enebria o odor as corpos escondidos
A túmulos e promessas de lábios gelados,
Dormindo sobre o mármore que esfria por baixo,
Na sombra do fim do dia,
No mundo sem vida que nada aquece
Em promessas de nada dizer.

Agitam-se as vozes subindo a encosta,
Tropeçando nos acasos,
Nos rios que alastram com a chuva
Como o negro da paixão
Como o vinho que já não enche nem preenche e se entorna,
Dolorosamente embriagando,
Esquecendo-me de procurar alguém
Entre aqueles que passam por aqui,
Esperando que me devolvam o meu lugar na cidade.

Entretanto, sem remédio, perco-me.