terça-feira, março 29, 2005


Furor das noites cheias

As luzes que tremem ao fundo definem o horizonte,
Um esplendor acetinado em perpétuo furor,
Intermitente, entre a cadência da chuva e da poeira,
Como um latejo quebrado de emoção.

Um ofegante e voraz quarto crescente desvenda,
Revela, em contemplação ferida
O pontão desafiador,
Outrora escondido no rebentamento furioso, avassalador,
Agora em doce calma aportada, esquecendo a deriva
Como o vagar das marés baixas,
Deambulando em exíguas memórias, onde ardem suspiros.

No sufoco do turbilhão,
Fulminante e fulgurante,
A euforia lancinante de amar,
Que não acaba nem morre como um instante,
Foge à corrosão avassaladora do tempo.

A brisa lambe em arrepio a pele descoberta pela Lua,
Tocando as margens e os estilhaços de luz flutuantes,
Voando em euforia, nos risos soltos das noites cheias.

segunda-feira, março 28, 2005


O perfume e o incenso

Deixo de morder...
O áspero mordido dos lábios,
Fio de sangue escurecendo este remoto canto,
Lavando, sem enganos,
O espanto do vermelho faustoso do amor,
Baixando guardas aos meus medos,
Receios esconsos e soturnos, escapando-se,
Atordoados com o sopro do oceano,
Entornados com a luminosa manhã,
Clareando a lucidez perdida
Amargada pela borrasca.

O perfume e o incenso,
Descendo as cordas soltas do barco que parte,
Como aridez efémera brotando
Do firmamento que se completa,
Embrenha-se, dilui-se sem tempo
Em nós e nós no mundo.


*

"E eu tinha, finalmente, todo o tempo do mundo - talvez seja isso o amor."
António Mega Ferreira in “Amor”

quarta-feira, março 23, 2005


Almas Guerreiras

Uma chuva silenciosa de folhas outonais
Agita bailados guerreiros suspensos no ar,
Polvilhando a floresta cintilante,
Reacendendo a nossa errância,
Numa cadência pulsional,
Clarividente,
Vagabundeando nas mudanças que o mar desenha na cidade.

Cicatriz

O desafio maior...
Descobrir o rasto da dor,
A impressão em carne viva, de sangue e tatuagens,
De cicatrizes que as pontas dos dedos desenham no teu rosto...
Afectuosas preciosidades...
Que te mutilam e escondem,
Que fingem ser o que não são
E que se mostram,
Como caracteres vermelhos em papel branco,
Um sortilégio, uma inevitável condenação,
Difícil de esquecer.

Mas tudo se ilumina e renasce.
A água gira e corre, moldando o mundo,
Criando e inventando o nosso riso,
Esperando o suceder dos dias,
Expectantes,
Pela memória que ainda não temos,
Pelas margens que o rio ainda não tocou.

segunda-feira, março 21, 2005


Todas as tardes são inúteis.


Diluídos na intimidade da multidão,
Antes de respirar, suspirar as palavras,
Últimas, derradeiras,
Sorrindo...

Os inebriantes enganos que já conhecíamos,
Elevados, em olhos fechados, à memória,
Entregue e convocada em delírios,
Dos corpos reféns de volúpia,
Desmaiando de prazer, serenos,
Incandescentes e transbordantes,
Arrancados ao suor salgado da pele,
Somente respirando, no minuto seguinte à insensatez,
Em todas as horas que não me recordo,
Esperando-te no extremo do mundo,
Com hora marcada,
Na secreta esperança de naufragar,
Passo a passo, estremecendo,
Arrepiando caminho.

Mas, a sinceridade perdeu-se
Nas minhas palavras,
Julgando-as minhas e sinceras.

Invasores


A tempestade, única,
Conduz ao promontório,
Veloz e impaciente.

Todos os enganos são previsíveis,
Irresistíveis,
Quais mãos que nos conduzem,
Quentes e melosas,
Envolvendo, entorpecendo.

A anestesia da calma,
Canto de sereia magicamente administrado,
A atracção da tormenta,
O medo do naufrágio,
Lento afogamento nas águas revoltas, em fúria,
Na culpa, censura.

E o mundo das sombras,
Incontrolável,
Selvajaria da alegria despoletada,
Ebulição estonteante ,
Fustiga-nos
De risos bárbaros implacáveis,
Invasores, taciturnos
Vertendo memórias...


A terra treme debaixo dos pés,
Esbatendo a respiração,
Sem alma, consciente.

O inferno são os outros...

sexta-feira, março 18, 2005


Sopro da quietude

Nesta noite, escrevo e esqueço, na areia que suja o terraço, as palavras que quero ver escritas na vida que se extingue ao fundo e, nos teus olhos, sem chama ou marca brilhante, distinguindo a ressonância dos risos distantes no tempo, lambendo as feridas de unhas e mãos tenazes no braço na hora de sair, a culpa que se agarra às desculpas e ao arrependimento de te ter aqui e perder-te sem nada dizer.
O silêncio acompanha-te, intencionalmente, disfarçando o eco das escadas de mármore, abrindo-se a mim o espanto e o flanco à tua ignorância quanto à minha existência.
Apenas o silêncio ensurdece a ausência de ímpeto, soçobrando a raiva perante o crepúsculo, rasgando o céu, daqui ao horizonte.
No silêncio compreendi que já não te ouvia e já ria da raiva e pouco nexo com que subias as escadas. Já fazia sentido a tua falta de sentidos.
Ai, o mundo lá fora... Jaz amarelecido no canto dos livros, onde o gato se aninha, rasgando os periódicos sem hesitar. A cidade continua indiferente a nós. É apenas silêncio, rápido e avassalador, tortuoso e frio, ferindo-me fundo, gritando, magoado e soprando a calma de antes e que não voltaria mais.
Já nem sei se Lisboa ainda tem telhados, porque não me dizes, nem o que eu quero ouvir. Tiraste-me a voz, como o sol deixou de aquecer o meu pátio, tapado por um silo branco e devorador.
*
Nem me apercebi de que entretanto saíras. Em surdina, não bateste a porta. Não tinhas moedas no bolso nem saltos altos e ninguém te cumprimentou.
No mais puro dos silêncios deixaste-me à demente e lacónica ausência de nada saber. Vil e perversa, não me disseste como vai o mundo lá fora.

*
“Noites em que tuas mãos aliadas,
Como que em prece
Far-me-ão cerrar os olhos
Por um breve instante...
E eu deixarei sair de meus pulmões
O sopro da quietude.”
Carlos Feitosa Tesch in “Nesta noite...em todas as noites”.

Profecia

A loucura escreve melhor,
Insinua-se suavemente na alma,
Em travos de surpresa a cada esquina,
Sem pompa embasbacada,
Ensaiando irreverentes coreografias
Em fúria e solidão tumultuosa,
Povoando a penumbra onde a luz se condensa num rumor,
Como um piano dissimulado num canto recôndito,
Onde a tragédia é mais indiferente e fascinante,
Onde cheira a ausência e demência
E a obsessão que se entranha,
Condenam-se,
Num incestuoso medo de se amar a si própria.

quinta-feira, março 17, 2005


Manhã de Veludo

Carmin e seda
Cai como veludo
Na chuva da manhã
Inesperada
Pronunciando as formas
As curvas da calçada
Ocultas com embaraço
Velado
Mas com espanto
Do Carmo e a Trindade
Caindo a seus pés
Corando
Como maçãs flutuantes
Que não trinco
Não quero desfazer o modelo
Nem apagar os holofotes
Que iluminam teu andar
Flamejante e incandescente
Tal fogo de Agosto
Consumindo o mundo
À sua passagem.

sexta-feira, março 04, 2005


Ouvi-te, à noite

dar sentido ao imenso vazio
lá dentro, fico à espera de nós
oportunidade rara e audácia
repousar nos cambiantes da voz

não evito um trago de desilusão
de nascer à flor da pele
ausentando-se um suspiro no escuro
como um piano na escuridão

falar do meu mundo, respirar
voo rasante de melancolia
delírio febril alimentando-se de si próprio
transgredir, sentir a tua voz descarnar

errância e desacerto dos passos
as árvores que fogem na janela
esbanjamento e desvarío
tu falas, preversa, da consciência dos teus traços

arrojada e vil proeza
a vassalagem ao momento
a sonoridade livre e consciente de ouvir
que me amas, mas sem certeza.
que me prendes e lapidas
com crueza.