quarta-feira, setembro 10, 2003

O sinal sonoro

I
Ao sinal sonoro, as luzes apagam-se. Há sempre alguém que tosse. Como franco-atiradores do espírito, intrometem-se, desconcentram, odeiam o silêncio.
Há sempre alguém que chega depois, depois do sinal sonoro, das luzes se apagarem. E pede licença, como se o estrago já não estivesse feito. Desculpa por tudo, por passar à frente, por não tossir.
Há sempre alguém que fuma desesperadamente no foyer, tentando, calculadamente, tornar espontâneos os movimentos compostos, de levar à boca, um e mais outro cigarro, como se de um acto cultural se tratasse. Agitar o fumo, acenar a alguém que não se vê, lá atrás, depois da coluna, de fumo e a do teatro, para não se sentir só, para preencher o vazio que sente a seu lado.
Há sempre alguém que fica para o fim. Só fala com a personagem, porque do nome do actor não se lembra, mas assegura a sua amizade e admiração eternas.
Incomoda-me que as luzes se apaguem e o sinal sonoro não me deixa ouvir o que os teus olhos têm para dizer, o teu corpo para fazer. Incomoda-me que não te possa beijar no escuro, deixando-me espaço para te imaginar. Saber que tens a pele arrepiada, só pela proximidade. Será que tens? Será que ouves? Será que sentes? Teremos trocado o toque pelo silêncio?

II

O sinal sonoro ecoou pela estação. Uma senhora levantou-se e seguiu. Ainda consegui vê-la, acenando na janela. Consegui percebê-la dizer “ Boa sorte”.
Logo de seguida, ouvi o aviso para a minha partida. Procurei o cais de embarque, subi as escadas, degrau a degrau, sem olhar para trás. Percorri a carruagem até não poder andar mais, até ao fim. Com o comboio em movimento segui os carris até á Gare do Oriente, até se transformar num ponto luminoso no horizonte possível, extinguido-se suavemente, enquanto os solavancos se confundiam e acompanhavam as batidas do coração.
Abri a janela e soltei as fotografias, uma a uma, os textos, um a um, para pudessem voar sem se tocar, sem se aproximarem, sem se trocarem, para que perdessem o sentido. E uma a uma, um a um, voaram, pousaram, longe, para lá de mim, para lá de qualquer coisa que eu pudesse identificar.
Encostei-me ao banco. A altura da janela permitia-me acompanhar a corrida das arvores, das casas, das planícies do outro lado do Tejo. Fugia o tempo, que ficava para trás, rápido e insensivelmente neutro, sem deixar marcas ou saudade, em silêncio, sem sinais de nada. Não ouvi mais o sinal.

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